Blue (a/éli/o)

172 26 30
                                    


Mais uma partida de jogo online sem mostrar seu rosto ou revelar sua voz. Algo frequente na vida da Blue, que tinha sempre receio de ser discriminado. Sua voz era um tanto andrógina por causa dos efeitos provenientes do bloqueio hormonal (pois éli ainda era menor de idade). E o ambiente gamer mostrava-se sempre hostil com pessoas como éli.

Como jogava em salas e locais diferentes, tinha dias que fingia ser menino. Nem era tão difícil. Gostava muito do som dos adjetivos "masculinos". E, "claro", quem os usa "com certeza deve ser menino". Sabia que era assim que pensavam.

Porém, sempre dava desculpas para não aparecer, por rosto ou por voz. Na maior parte do tempo isso era fácil. Já houve situações em que precisou se retirar e "sumir misteriosamente".

Fora desse ambiente, costumava ser apenas "a Blue" dentro de seu minúsculo círculo social. E então se passava por menina, porque, né, "se é a Blue, devia ser menina". Sabia que era assim que pensavam.

Essa brincadeirinha de se passar por menino e menina tinha seu lado divertido, mesmo que fosse andar na corda bamba do hate gratuito da Internet, sempre à espreita, sempre fazendo de alvo quem é trans e não-binárie.

Para sua imensa sorte, sua família aceitava a questão da transição. Mas entendiam Blue como uma pessoa trans binária. Tratavam-no como no gênero que entendiam que éli se reconhecia.

Blue gostava muito da ambiguidade. Foi esse o motivo de ter escolhido o pronome éli; parecia ele e ela ao mesmo tempo. "Um pronome andrógino", como dizia para si. Não lembrava onde o tinha visto exatamente. Sua memória não era das melhores.

Sua aparência era consideravelmente andrógina. A família atribuía isso aos bloqueadores hormonais que éli pôde tomar após uns meses em terapia pra "comprovar" que era trans. Esperavam que, posteriormente, a aparência de Blue ficasse mais "estável" com a hormonioterapia. Éli não queria isso. De jeito nenhum.

Mesmo que, em seu processo de autodescoberta, tenha preferido mais as características do "outro sexo", Blue desde sempre não via um menino ou uma menina no espelho. Às vezes entendia o que era menino e menina. Às vezes não entendia. Às vezes as duas coisas lhe contemplavam, de alguma forma. Às vezes preferia ver-se como uma existência única e separada delas.

Blue demorou muito para entender o que éli era. A informação era muito escassa. Nem sabia que havia nome para o que era: pessoa não-binária.

Seu primeiro contato acabou sendo conteúdos e alguns espaços virtuais feitos para pessoas trans. Aprendeu muito neles. Mas eram todos voltados a pessoas binárias. Até então, nas raríssimas vezes que interagiu, se passou por trans binário.

Seu entendimento como não-binário era recente. Bem recente.

Isso e pensar então que era possível adotar um pronome diferente de ele e ela, para a Blue foi como abrir a janela de um novo mundo. Um mundo que finalmente lhe fazia sentido. O mundo déli. Mesmo que ainda fosse pouco.

E por que seu nome era Blue, que significa azul em inglês?

O motivo podia ser bobo, mas tinha uma simbologia especial para éli: quando criança, Blue gostava muito do desenho A Mansão Foster para Amigos Imaginários. Nele, havia o personagem Bloo, um amigo imaginário. E sendo um ser imaginário, Blue não conseguia vê-lo como menino ou menina. E tinha vezes que éli se via como imaginário, pois não se reconhecia nem na turma azul nem na rosa. Começou como um apelido dado a si. Tornou-se um código de sua existência sem-explicação-aparente. E, agora, é seu nome.

*Seis Pessoinhas*Onde histórias criam vida. Descubra agora