Rai (a, o/ela, ele/a, o)

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— Olha o milho verde! — gritou Rai na praia, andando com o carrinho. — Milho verde gostosinho pra encher o buchinho!

Embora estivesse muito sol e sem nuvens, o dia não estava tão quente. A areia estava fofa e toda a praia estava sendo agraciada por rajadas aleatórias de vento fresco. O dia estava ótimo; isso explicava a quantidade de pessoas lá, pessoas de todo tipo, de toda idade, todo mundo relaxando e divertindo. Um cenário maravilhoso para os olhos de Rai. Uma cena da qual jamais enjoaria.

E quem era ela? Bom, ele era uma das maiores figuras da praia de Salvador. Baiana e filho de Oxumaré, o Orixá colorido e transgressor; às vezes homem, às vezes mulher. Vendia milho pela praia, mas costumava fazer bicos num quiosque de uma amiga (o qual era popular, logo, movimentado). Não havia terminado a escola, nem queria fazer faculdade. Ambientes acadêmicos sempre lhe foram hostis. Sempre lhe foram negados. Com o tempo, ele aprendeu a não se importar.

Tinha uma androginia natural, a qual realçava com roupas "mistas" – uma regata com saia, ou uma camiseta decotada com bermuda, coisas assim. Apesar disso, muita gente costumava tratá-la de uma maneira após uma inspeção cuidadosa – o que, para ele, era algo extremamente desconfortável, invasivo. Ela sabia o motivo por trás disso. Óbvio qual era. Mas ele tentava passar por cima disso. Ogum havia lhe ensinado o valor da resiliência. Além disso, suas interações com a maioria eram breves, então ainda podia escapar da adivinhação de seu sexo.

Uma pessoa se aproximou. Estava de biquíni rosa e florido.

— Olá... moço — disse com receio.

— Olá! Quer espiga ou na tigela?

— Ah... Ah, bom, vou querer espiga... moça...

— Já sai.

Rai logo tirou a espiga da água fervente, deixou pingar por uns segundos, e descascou uma das folhas. Colocou por cima uma fatia generosa de manteiga. Recebeu o dinheiro numa mão e entregou a espiga com a outra.

— Obrigada... — disse a pessoa, que parecia que ia dizer algo, mas nada disse e se foi.

"Tadinha. Se deu todo o trabalho de adivinhar se sou moço ou moça, sendo que era só me dizer 'olá', fazer o pedido, e sair", pensou num tom cômico. Ele costumava ser debochada.

Não era incomum Rai ser visto como um homem muito afeminado ou uma mulher bofinho na maior parte do tempo. Era frequente as pessoas não saberem como se referir a ela. Ou chutavam e insistiam no chute, ou chutavam e depois se "corrigiam", ou alternavam quando podiam e esperavam alguma reação. Raramente alguém tinha o bom senso de falar sem meter gênero, ainda mais quando nem era necessário. A maior parte das interações entre ele e clientes, no carrinho ou no quiosque, não necessitava de gênero. Mas as pessoas não conseguiam evitar. Rai aprendeu a achar isso cômico.

Uma vez, há um tempo, uma pessoa jovem e simpática no quiosque optou pelos gêneros alternados. Depois, quando estava indo embora com a família, chegou em Rai e disse "me desculpa, realmente não sei como falar com você, e espero não ter ofendido." Rai deu uma risadinha e disse que estava tudo bem. Até deduziu que a pessoa não era de lá. Afinal, ninguém por lá alguma vez pareceu se importar de verdade em como tratá-lo e se o havia ofendido.

— Raimundo — disse um colega do quiosque. — Vai atender aquela mesa, por favor? Estou meio ocupado.

Rai foi até a mesa. Anotou o pedido das três pessoas, que pareciam ser um grupo de amigas. Voltou logo com as bebidas que pediram.

— Raimunda — disse sua amiga lá do balcão. — Leva o pedido da mesa oito aqui.

Após levar o pedido, o trio da outra mesa a chamou.

*Seis Pessoinhas*Onde histórias criam vida. Descubra agora