O bloqueio criativo devia ter uma palavra passe tal como a que temos para desbloquear o telemóvel, e se existe, se realmente existe sinceramente o meu código minha mente tratou de esquecer.
Como o gelo que fica exposto ao sol e é totalmente esquecido, todas as palavras bonitas ou não, certas ou erradas que alguma vez pensei em colocar no papel escorrem para um lugar diferente que não é onde deveriam estar. Quatro paredes, uma chávena de café, a madrugada e o nada. Nada certeiro que caia nessa folha e permita-me terminar.
Sete horas atrás eu fiquei descansada crendo que ao levantar escreveria no mínimo o "era uma vez", mas se já é o final não tenho como recomeçar.
Caramba! Isto é tão péssimo, mais péssimo que uvas passas na ceia do natal.
Mudo a folha do caderno que ultimamente vem sido preenchido por desenhos, frases soltas, rabiscos tontos e lágrimas pesadas que pulam de meus olhos como o pêlo do gato da garganta dele. Eu só queria terminar já que iniciei, mas relendo é tudo tão vago e raso. Estúpido e errado, como alguém leria isso se nem mesmo eu tenho forças para o fazer? Quer dizer, escrever é fácil, para quem sabe é como o a b c para um alfabetizado, mas eu não sirvo nem para narrar uma estória para ninar como as tantas que disponíveis estão pela internet.
É certeiro, ainda que tente, esta porcaria não é para mim. Eu só queria fazer e expor aquilo que realmente sinto, porém é um labirinto, entrei e não tenho como sair. Em verdade tenho, é só recuar e desistir.
"Então, ela voou e..."
— Não, assim não! - resmungo deixando a frase rasurada — Ela sempre voa, como isso pode servir de fim. Emoção, eu tenho que ter a... a maldita emoção. Ela voa... - fecho os olhos, pressiono a caneta no mesmo caderno sem parar de esfrega-la na superfície que creio ser tomada pelo azul dela, até que escuto as folhas sendo rasgadas enquanto lágrimas descem como provável rio Jordão correu.
Isto não é para mim, ainda que eu sinta ser pertencente a mim. Não sirvo e não serve, ainda que alguém diga que sim. Por que tão difícil?
— Julia!!! - a voz tão conhecida por mim, vinda da cozinha, denuncia minha mãe que certamente me chamará para comer.
Não acredita?
Espere só em 1, 2, 3....
— Não me faça subir aí e jogar essa colher de pau na sua cabeça, mocinha! Vem comer!
Ai está.
Sim, é assim todos os dias. Me tranco no quarto todos os dias tentando o meu melhor para escrever o que quer que fosse mas meu dia termina exatamente assim: as folhas brancas, a tarde passando aos meus olhos sem que eu veja, e a noite me brindando com a voz petulante de mamãe me dizendo para desistir, e comer. Não, não exatamente ela me pede para desistir mas — de que outra forma você interpretaria aqueles gritos? Na minha mente faz total sentido — afinal, deve ser alguma mensagem do universo usando minha mãe para dizer "desista disso".
Suspiro, jogando meu celular de lado e depois de uma longa sessão de discursos vindos da minha mãe, com a mão na cintura e a colher de pau apontando na minha fronte, eu começo a comer.
Melhor: tento. Porque a única coisa que acontece durante todo o jantar sou eu, mexendo o garfo em minha comida em círculos, mal tocando o jantar. E é óbvio que minha mãe ralha novamente. E é óbvio, outra vez, que vou levar a comida para o quarto prometendo comer tudo enquanto termino os "deveres da escola." Ela acredita, nos separamos, eu tranco meu quarto e abandono o prato de comida para o lado.
Sempre assim.
Suspiro alto, mais tarde, quando finalmente desisto de tudo e me deito.
"Não vale a pena tentar mais, Júlia. Desista. Rápido."
Murmuro para mim insistentemente, até que minha voz se torne uma linha fina cada vez mais distante, pesada, e sonolenta. Até que apenas o doce som da minha respiração se torne a última coisa que eu me lembre e uma escuridão cada vez mais latente me envolve, me embalando em seus braços como uma criança.
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Leve-me À Neverland
Short StoryUm pequeno conto coletivo para mostrar para alguém especial que ela pode e merece ganhar o mundo. Uma obra do Quinteto & Cia Plágio é crime. QuintetoFantastico5 24/06/2020