Prólogo

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Essa é a história de como você conheceu o amor da sua vida e, obviamente, como conseguiu estragar tudo.

Você sempre foi muito bom em estragar tudo, diga-se de passagem. Essa é a primeira e, provavelmente, única coisa importante que você precisa saber sobre si mesmo: estragar tudo é o seu superpoder.

O resto virá com o tempo.

No momento, ainda é de manhã e você já está puto. Você não é a pessoa mais paciente desse mundo. Você não está nem perto dessa estatística. Mas como já passou da idade em que fazer birra é bonitinho e homicídio ainda é crime, você tenta se controlar.

Não vai dar hoje.

O cachorro continua latindo. Latindo. E latindo. E latindo malditamente como nas últimas horas inteiras. Um ganido fino de filhote marrento ou uma raça pequena mais marrenta ainda. São sete horas da manhã. Desgraçadas e bastardas sete horas da manhã de um sábado. Você não pregou o olho por um único segundo essa madrugada. Podia ser porque perdeu o emprego semana passada. Podia ser porque seu autointitulado ex-namorado se recusa terminantemente a responder uma mensagem sequer. Podia ser porque não faz a mínima ideia de onde foi parar o controle da sua vida.

Mas não.

Você não dormiu porque aquele bastardinho miserável do cachorro do andar de cima chorou a noite toda.

Veja bem, você gosta de animais. Pelo menos, acha que sim. Não é do tipo vegano que crucifica churrasqueiras, mas consegue ver fofura nos bichinhos. Principalmente se tiverem em colos que não sejam o seu. Isso provavelmente é culpa dos seus pais, que nunca te deixaram sequer cogitar a ideia de ter outro ser esfomeado, caro e inútil em casa que não fosse você mesmo.

Talvez você esteja sendo injusto. Talvez não seja culpa do bastardinho. Ele deve estar sendo maltratado, só isso justifica esse escândalo.

Meu deus, a garganta dele não cansa nunca...

Você senta na cama com um solavanco. Seus cabelos desleixados e mais compridos do que pediria a moda caem em cima dos seus olhos, te irritando mais. Precisa cortar essa coisa! Sai da cama cambaleando como um drogado, o sono usurpado fazia marcas escuras debaixo dos seus olhos, te causando uma careta para o espelho do quarto, o que só te deixou mais insatisfeito com a sua cara. Não que fosse uma cara especialmente feia, nem uma cara especialmente bonita. Talvez este fosse o problema, não era uma cara especialmente nada. Seus olhos eram castanhos como da maioria, a pele clara era comum; e os cabelos escorridos de quem nascera louro, mas a natureza o sabotara, trocando um belo amarelo trigo por um tom acinzentado sem graça, só foram interessantes na sua infância longínqua. Você não acha que alguém além da sua própria pessoa faria essa careta descrença ao olhar para você, mas também não acha que merece uma segunda olhada.

Paciência...

Oh, é mesmo... a sua já acabou a muito tempo!

Os latidos do cachorro apitam nos seus ouvidos como o sino de uma igreja as seis da manhã e seus tímpanos reclamam como se saísse de uma boate. Você troca o pijama velho por qualquer coisa usável que não se importou em escolher. Quem sai para quebrar a cara de alguém não se importa muito com aparência.

Seu estômago ronca de um jeito dolorido. Você não pretende tomar café, mesmo se lembrando de que não jantou nada no dia anterior e seu almoço se resumiu a um pacote de Doritos. Se você não se matar por causa desse latido, seu colesterol ou sua glicemia vão fazê-lo por você.

Não importa agora, com o rosto lavado, os dentes brevemente escovados e um elástico frouxo nos cabelos, que ainda sim insistem em escapar e cutucar as suas pálpebras, você sai do apartamento. Com fome, com sono...

E com um desejo homicida.

Vou matá-lo. Pensa, entrando no elevador.
Claro que é apenas um andar, mas ninguém espera que alguém que come salgadinho no almoço seja atlético, certo?

Estava no penúltimo andar do prédio. Poucos apartamentos o ocupavam inteiro. Sim, você estava indo matar um bambambam do prédio, um dos moradores de um duplex da cobertura.

Devia ser um playboy enorme que se achava esperto o suficiente para cuidar de um cachorro, mas só se preocupa com a própria ração. Ou uma dondoca velha e viúva que ficava irritando o chiuaua. Claro que você não cairia na porrada com a última opção, mais ainda podia falar um monte.

Os latidos se tornam mais insistentes e irritantes a medida que se aproxima da sua porta. Todas as demais do edifício eram pintadas num marrom-canela padrão, mas aquela tinha um tom de cinza arroxeado claro de devia ter sido escolha do morador. A balança pende para o lado da dondoca velha e você faz um bico desagradado ao bater. Queria muito que fosse um homem para você bater nele também.

Milagrosamente, lindamente, maravilhosamente, os latidos param.

Você arregala os olhos, fitando a madeira da porta como se ela tivesse alguma bruxaria. Quase teme se mexer, quebrando o encanto, parando comicamente com a mão erguida em posição de soco. Um suspiro de alívio involuntário escapa da sua boca e seus tímpanos parecem derreter de felicidade. Ouve um barulhinho sutil de pisadinhas animadas e fungadas curiosas perto do pé da porta. O cachorro tinha parado de latir para conferir o convidado.

Você cogita sair dali enquanto pode. O sono parece puxar as suas pálpebras e o silêncio era de uma serenidade torpe, quase te fazendo escorar no batente e cochilar ali mesmo.

Você não tem tanta dignidade assim.

Desiste ao ouvir passos humanos do outro lado. Aquele desgraçado ainda merecia umas poucas e boas. Deixar o animal passando fome enquanto malhava na academia particular do apartamento ou então revisava o testamento do último marido morto não era muito solidário com os vizinhos. Se você estava estereotipando? é obvio que sim. Quem não tem essa tendência quando está fervendo de ódio, pode te jogar uma pedra mental.

Você estereotipou o cachorro também. Só conseguia ver aqueles chiuauas magrelos que cabem na bolsa no caso da velha, ou um filhote de pitt bull branco para o playboy, talvez um Golden, já que estava na moda, tudo com muito pedigree, claro.

Ele mora na cobertura, afinal...

Você ouve o trinco girando e prepara o fôlego. Seja quem for, vai dormir hoje com os ouvidos tão doidos quanto os seus. Seja um homem para eu quebrar a suas fuças. Pede, acrescentando um "por favor" para seja lá qual deus. Seja um homem. Seja um homem. Seja um homem e...

Nossa...

A porta se abre e todas as palavras morrem dentro de você.

Não, não é uma velha perua. Nem um riquinho esquisito. O Destino pareceu te ouvir afinal, é um homem. É rapaz...

E ele é absolutamente lindo.

— Pois não? — ele pergunta docilmente, abrindo um sorriso leve e educado.

E tudo, absolutamente tudo de brilhante,
inteligente e articulado que a sua mente de gênio consegue pensar no momento é:

— Você tem um copo de açúcar?

O Garoto da CoberturaOnde histórias criam vida. Descubra agora