Capítulo 3 - Hermes

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Você acorda com algo pesado vibrando no seu peito. Suas pálpebras preguiçosas tremem e de repente está encarando um par de olhos amarelos enormes, as pupilas fendidas oscilando para você. Naquela letargia sonolenta, você tem certeza de que é o demônio que veio te buscar.

— Aaaah! — você grita imediatamente, se levantando num solavanco e expulsando o imenso gato persa que estava descansando tranquilamente em cima do seu tórax.

O gato pula no chão e te encara com o mais completo desprezo, piscando algumas vezes antes de sair bamboleando a calda rajada e que parecia ter mais pelo do que a sua cabeça.

E um pelo bem melhor, diga-se de passagem.

— Moço, cê tá bem?

É a sua vez de piscar algumas vezes, provavelmente de forma mais imbecil e menos elegante do que o gato. A primeira coisa que você nota é que não está em casa. A segunda, é que está no chão. A terceira é que tem uma senhora de meia idade completamente desconhecida te olhando como se você fosse uma criança retardada precisando de ajuda

Ela não está errada.

— Estou sim... obrigado... — você mente pela centésima vez desde que acordou, levantando-se apoiado no sofá do qual acabou de cair miseravelmente.

Um olhar de relance te faz lembrar de onde você está, mas não porque ainda está ali.

— Que horas são? — você pergunta a si mesmo, tateando os bolsos a procura do celular que não se preocupou em pegar quando acordou.

— Quase duas. — responde a mulher, esfregando as mãos no avental.

Você sente seu queixo cair, nem querendo imaginar a cara que estava fazendo. Tinha chegado ali por volta das oito da manhã...

Você dormiu seis horas no sofá de um desconhecido.

Sem saber se estava aliviado por não estar numa bacia de gelo ou catastroficamente constrangido pela situação, você encara a senhora que ainda de olha de maneira gentil e talvez mais que um pouco penalizada.

— Helena? — você arrisca, vendo que acertou em cheio quando ela te abriu um sorriso.

— Em carne e osso, mais carne do que osso. — ela diz, deixando escapar um sotaque com cara de triângulo mineiro. — Senhorzinho Guilherme está me deixando famosa por aí, uai.

Helena tinha perto dos cinquentas anos, cabelos escuros salpicados de cinza, pele branca e um corpo que parecia todo feito de bochechas.

Vocês se encaram por algum tempo sem saber o que dizer. O gato persa reaparece na sala e sai caminhando tranquilamente para a cozinha, não sem antes se esfregar nas suas pernas.

— Suas panquecas são incríveis. — você diz de repente, provavelmente não o comentário mais sensato para o momento, mas completamente verdadeiro. Naquelas suas últimas horas de vida você percebera que era excelente em ser insensato e péssimo em ser mentiroso, então por que não apostar nos seus pontos fortes?

Helena soltou uma gargalhada tão alta que te assustou um pouco. Shoyo latiu em algum lugar, provavelmente preso para deixar a mulher trabalhar em paz. Ela se aproximou de deu uns tapinhas no seu ombro, parecendo confortável com o contato e te deixando mais confortável também.

— Senhorzinho Guilherme me disse que você gostou do café da manhã, por isso fiz almoço!

— Almoço? — você pergunta atordoado, temendo ter entendido totalmente errado. — Você fez almoço... pra mim?

— Sim uai, essa hora da tarde, deve estar morrendo de fome já!

— Ah, mas não precisava... eu...

— Na minha época a hora do almoço era sagrada, sabe? Mas hoje em dia os jovens comem tudo errado, tudo errado, por isso vivem adoentados. Eu nunca peguei uma gripe na vida!

— Eu não queria dar trabalho...

— O senhorzinho Guilherme é outro, sabe? Vive dessas comidas congeladas se eu deixar. Mas não senhor, não senhor, venho aqui até no sábado se precisar!

— Eu não sei o que falar...

— Não precisa falar nada de boca cheia. — ela diz com simplicidade, e quando você percebe, está de volta a cozinha, que cheira maravilhosamente a alho refogado e cebola. — Aqui, eu fiz uma marmita, caso você não queira comer aqui e... HERMES, SEU GATO SAFADO, DESCE DAÍ.

O recém-intitulado Hermes olha para a mulher com o mesmo desprezo que viu minutos atrás e você agradece por não ter a preferência do seu desdém, para logo descer na bancada da qual desfilava graciosamente. Você não entendia de gatos, mas ele era bonito pra caralho, enorme, peludo e muito mais bem penteado que você. Hermes, você se lembra, era o deus grego dos ladrões. E você se questiona vagamente se, caso pergunte a Guilherme, a justificativa dele seria algo como "talvez eu goste demais de mitologia grega". Isso te faz sorrir por alguma razão.

Helena continua resmungando um monte, espanado pelos imaginários da bancada.

— Bicho folgado, não sei como senhorzinho Guilherme te atura, viu?!

— Guilherme saiu, eu presumo. — você aponta o óbvio, coçando a cabeça e reparando nos seus cabelos soltos. Provavelmente tinha deixado o elástico no sofá entre o seu quarto ou quinto sonho.

Definitivamente não voltaria para buscar.

— Ah sim, ele tem estágio hoje. Tá sempre estudando ou trabalhando, o coitado, não tira uma folga decente. — ela diz, quase divagando, enquanto te entrega uma tupperware fechada cheia de comida quentinha que você não soube como recusar. — Eu brigo, mas queria um filho esforçado assim, sabe? Criei três vagabundos!

Você ri um pouco, se perguntando se era assim que a sua mãe falava de você para os outros.

Provavelmente.

— Eu não sei como agradecer. — diz por fim. — Hoje com certeza comi melhor que no resto do mês inteiro. — você tenta um elogio, só percebendo mais tarde que aquilo talvez tenha soado meio patético e triste.

Helena não percebe ou finge que não, e descarta o comentário abanando as mãos, embora você perceba que ela corou um pouco.

— Deixa disso, deixa disso, já estava fazendo a comida pro senhorzinho Guilherme passar o fim de semana, não custava fazer mais um pouquinho. Ele come igual um passarinho, por isso tá magro daquele jeito. Igual você, inclusive, tem que comer mais, viu? — ela diz, te acompanhando até a porta, e você sabe que está sorrindo para o fato de que Guilherme definitivamente não come pouco e definitivamente não está abaixo do peso e o cuidado daquela senhora é definitivamente muito fofo. — Não some não, aparece por aí.

— Apareço sim. — você diz o que era adequado a se dizer naquela situação.

Mas por alguma razão, em vez de aceitar a sua resposta perfeitamente apropriada, embora talvez não muito verdadeira, Helena suspira, botando ambas as mãos nos quadris enormes, parecendo repressiva. E você se prepara para uma bronca que nem sabia que merecia.

— Tô falando sério, tá bom? Vocês jovens vivem tudo isolado, não custa fazer umas amizades. — diz, e você sabe que ela não te conhece o suficiente para estar falando especificamente de você. — Senhorzinho Guilherme pareceu ter se divertido hoje... — ela confirma o que você imaginou, aproveitando para te lembrar que pelo menos alguém tinha se divertido com o seu papel de idiota. — Some não, viu?

Dessa vez você apenas confirma com a cabeça, mais seriamente, antes de ir embora com as mãos mornas da melhor comida caseira que iria experimentar na vida e pensando que, talvez, depois que a sua vergonha passasse, voltar não fosse tão má ideia assim.

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