Domingo teve a decência de começar frio.
Você ajeita o cabelo na frente do espelho, tentando usar creme o suficiente para fazê-lo ficar longe dos seus olhos sem ter que prendê-lo. Talvez devesse realmente investir em um corte decente, mas imaginava que gostaria dele se crescesse um pouco mais. Além disso, aquilo provavelmente irritaria sua mãe, o que por si só já valia o inconveniente. Você sabe que cozinheiros de cabelo comprido não são muito bem vistos, mas se convence que evitar a todo custo a barba que sempre quis já fosse sacrifício o suficiente.
Você coloca uma jaqueta de couro que combina com os sapatos escuros e pensa que um pouco de perfume não seria ruim. Tenta não se arrumar demais e dar na cara que estava inseguro com a própria aparência ultimamente. Você sabe que Guilherme é areia demais para o seu caminhão. Leandro também era, mas tinha uma personalidade horrível e sabia disso, o que provavelmente equilibrava um pouco as coisas.
Você checa a tela do smartphone e percebe que já são quatro horas, o horário combinado. Provavelmente o segundo café da tarde dele. Você sorri ao pensar nisso, enquanto gira a chave do seu apartamento.
Shoyo, como sempre, latiu para campainha.
Ele ainda dava um pouco de trabalho a noite e você ouvia, mas estava gradualmente melhorando. Você passou algumas madrugadas dessas rindo de Guilherme e do seu desespero de pai de pet em mensagens.— VAI ENTRANDO! — consegue ouvir o grito abafado por trás da porta.
Você hesita um pouco, mas acaba por girar a maçaneta, dando de ombros. Shoyo, aquele mini desgraçado, quase foge, escapulindo no meio das suas pernas. Você o pega completamente por reflexo, o coração acelerado de repente. Perder o filho peludo do seu encontro não parecia uma boa forma de começar as coisas.
— Desculpa... — Guilherme surge na sala, tentando comicamente afivelar o cinco as pressas. — Shoyo fez xixi na minha cama, tive que trocar lençol daí... — ele para, olhando para você com uma cara engraçada, antes de cair na gargalhada.
— O que? — você pergunta, confuso.
— Sabe que está segurando um cachorro, e não uma barra de Césio-137, certo?
Você olha para si mesmo e percebe que talvez esteja segurando o cachorro um pouco longe de você.
Ou o mais longe possível de você.
— Desculpa. — pede, sem saber ao certo o porquê. — Eu nunca tive um cachorro.
— Isso devia ser um crime inafiançável. — ele diz de bom humor, pegando o filhote das suas mãos. — mas tudo bem, ele provavelmente encheria sua roupa de pelos.
Você sorri sem graça, vendo ele colocar o bastardinho no chão, e logo te chama para fora o apartamento.
— Vamos logo, estou numa fome que, se demorar mais um pouco, eu vou comer você...
*
Estava um clima perfeito para um café daqueles, você pensa, passando pela porta. Nunca tinha entrado naquele lugar, embora fosse a menos de dez minutos de carro da sua casa.
Sim, vocês foram no carro dele, nada menos que um Jeep Renegade branco que, assim como tudo que pertencia a Guilherme, era limpíssimo, cheiroso e caro.
Você ainda não consegue acreditar que está saindo com uma pessoa bonita, gentil e rica. Você nem mesmo acreditava que seres assim existiam, parecia algo que ia diretamente contra as leis do Universo. De certa forma, uma parte sua estava esperando descobrir nele um defeito imperdoável, como agredir velhinhas indefesas ou ter votado no Bolsonaro.
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O Garoto da Cobertura
RomanceVocê está desempregado. Você está solteiro. Ambos por livre e espontânea vontade dos outros. Você também está insone e, mais uma vez, graças a terceiros. Mais especificamente, ao bastardinho do cachorro do andar de cima e seu dono relapso, que o dei...