Capítulo 10 - Hozier

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Você foi uma criança gorda.

Isso não devia ser uma surpresa, considerando que sempre amou tudo que envolvesse comida e ainda detestasse exercícios. Educação física era um suplício e seu sangue italiano o tornava fisicamente incapaz de negar o segundo prato de lasanha. Nunca chegou a ser algo preocupante, ou pelo menos não deveria ser. No fim, era nada mais que formas arredondadas e infantis que sumiriam no seu estirão adolescente e nunca prejudicariam sua saúde.

Isso se você não tivesse a mãe que você teve.

Elvira odiava seu corpo. Elvira odiava suas bochechas cheias e odiava ter que comprar roupas para crianças de doze anos quando você tinha dez, não importava que você sempre tenha sido mais alto que todos da sua idade. Elvira odiava que fosse desajeitado e parecesse pesado e odiava ser julgada pelas outras mães com seus filhos bonitos e magros. Ela nunca o levou em uma nutricionista de fato, achava que já sabia demais sobre dietas a esse ponto. Então ela enchia seu prato de folhas sem tempero e carnes magras e duras, nem um grama a mais do que a balança permitia, não importasse a sua fome. A memória de ter todos os seus pratos pesados na sua frente era vívida em sua memória e isso sempre o fizera se sentir humilhado, como se fosse gado comendo ração.

Funcionava por algum tempo. Seu corpo perdia água e massa e alguns quilos sumiam da balança. Você sempre suportou o quanto pode, mas qualquer corpo tem um limite para quanta fome aguenta e, eventualmente, o estresse e a privação superavam a pressão, e tudo acabava numa quantidade astronômica de massas e doces. Então os quilos milagrosamente perdidos davam as caras, e tudo começava de novo. E de novo.

E de novo.

Você foi esticado e espremido e frustrado pelo efeito sanfona por todo fim da infância, até que o óbvio ocorresse e a adolescência transformasse tudo em altura e músculos. Ainda não era tão magro quanto sua mãe gostaria, tinha coxas grossas e um peito largo demais. Mas estava dentro de um peso saudável e passou a ser tolerável aos seus olhos. Embora ainda causasse uma expressão atravessada com qualquer boa quantidade de carboidrato que colocasse no prato. "Tome cuidado com o que você come, Augusto César." Ela dizia. "Ou vai acabar redondo de novo."

Você desliga a luz.

Gostaria que as marcas daquela época fossem apenas mentais, assim você poderia fingir que esqueceu de tudo. Infelizmente, sua pele se lembrava também. Estrias tinham se desenhado em várias partes do seu corpo, especialmente nos ombros e quadris, como tatuagens não solicitadas ou raízes brancas que quebravam sua pele como quebravam o concreto da calçada. Você as odiava.

— Nas sombras, então... — Guilherme murmura de um jeito quase épico, completamente alheio aos seus devaneios.

Você não quer ser tragado pelas suas memórias. Você se atraca a ele como se ele fosse uma parede que você precisa escalar para fugir das próprias sombras. Você o beija e o morde e o aperta  com muito pouca delicadeza e ele lhe devolve uma série de suspiros e arfadas que se pareciam muito pouco com protestos, então você o empurra pela escuridão.

Você não achou a cama, mas ela achou as coxas de Guilherme em algum momento, fazendo ambos tombarem com pouca graça sobre uma série de edredons com cheiro de doce de amaciante. Você ignora por completo a falta de sutileza dos próprios atos e se concentra em tragar dele tudo o que você pudesse: seu gosto, seu hálito, seu fôlego. Você quer  encher seu corpo com o dele para que, talvez, tenha um pouco menos de você.

Por que às vezes é difícil ser você.

— Eu começo a pensar... — ele sussurra, interrompendo a si mesmo com um gemido crasso quando você aperta o joelho entre suas pernas — que apesar de tudo você continua com fome...

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⏰ Última atualização: Nov 01, 2023 ⏰

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