Dia das Angiospermas.

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As letras do celular começam a se embaralhar e o arroz espera ser comido por uma boca sem palavras. É dia das mães. Ela espera um amor não dado pelo meu pai. Eu não sei se o tenho. No final, envio palavras repetidas e fotos antigas. Ela agradece e pergunta quando será a minha vez. Respondo que tenho três gatos. A conversa encerra.

Hoje é o meu último dia de folga. É uma sexta. Amanhã será um final de semana com uma segunda-feira normal. Termino o meu almoço olhando publicações sobre o dia de hoje. Me engasgo com um "eu te amo" que não consigo dizer.

Abro a geladeira e ela me sussurra "vazio". Fria e vazia. Ela não está sozinha com esses adjetivos. Faço a lista para o mercado e decido que vou antes de buscá-l@ no trabalho. Hoje el@ não vai voltar de carona com os amigos.

Minhas plantas reclamam da luz de dia nublado que recebem. Meus gatos esperam para que eu sente em algum local para que possam se enroscar. Decido assistir documentários sobre biologia marinha e costeira. Com certeza estou fazendo o curso certo.

Mudo algumas plantas de vasos. A planta mãe que gera de si uma nova vida. Nutre a planta até que esteja pronta. Depois a joga à terra. Uma planta totalmente igual a ela. Angiospermas não esperam uma mensagem hoje.

A água quente do banho deixa minha pele vermelha. Muito quente. Coloco minha cabeça debaixo da água que cai. Gotas escorrem pelo vidro do box. Tensão superficial. Gotas escorrem em mim. Tensão.

...

Pego a lista e me despeço de meus gatos. Já volto. Entro em meu carro e pego o caminho mais perto do mercado. Coisas nas prateleiras. Várias marcas. Mesmo produto. Chocolate. El@ vai adorar. O carrinho anda em zigue zague. Não pega o caminho mais rápido. De prateleira em prateleira. Não há muitas pessoas no caixa e a fila anda rápido. Compras e eu no carro. Hora da escola.

...

Estaciono o carro na frente da portão e ignoro as gotas de chuva que tentam entrar. Esse banco não é para a chuva. Mas você a traz, correndo, para dentro do automóvel. Seu corpo se joga no banco do carro. Seco seu rosto e em minhas mãos há um sorriso. Em meu rosto também.

- Como foi o dia, meu amor? - Pergunto.

- Isso é um diálogo sendo escrito? - Me devolve palavras e uma dúvida.

- Era apenas uma pergunta. Agora são duas e uma resposta. - As palavras se multiplicam com el@.

Ao longo do trajeto para casa el@ me conta como foi o dia. O que mentes curiosas lhe perguntaram. Brilho nos olhos. Coisas tão pequenas. Pequenas como nós.

...

Carregamos as sacolas pelas escadas e nos esprememos na porta de entrada para passarmos o mais rápido possível. Como se fossemos um só. Os gatos tentam fugir para o corredor de lajotas frias.

- Você comprou? - Pergunta el@ mais às sacolas do que à mim.

- Comprei o que? - Pego as barras de chocolate e saio correndo.

El@ corre atrás de mim rindo. Naquele momento eram barras de ouro. Me alcança em nosso corredor inexistente e me joga na cama. Risadas e cobertas. Nos rolamos em risos e cobertas. Está em cima de mim. Me pegou. Isso já faz tempo. Me sento e el@ me puxa para um beijo. Os lábios soltam os meus aos poucos. Desculpada por correr com as barras. Desculpada por seus lábios sem palavras. Um saco de ração se espatifa no chão na cozinha. Temos que guardar as compras.

...

A escuridão contrasta com as luzinhas de natal penduradas fora de época pela pequena sala. Pés cobertos por meias deslizam levemente pelo tapete. A garrafa vazia no canto da sala. Cansada de servir às bocas risonhas. "Ai de mi llorona" ressoa pela sala. Seus braços descansam em meus ombros. Minhas mãos não largam seu tronco. Nossos pés acariciam o tapete com ritmo. As vozes repetem palavras cantadas em espanhol. "Ai de mi llorona".

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