Sete dias antes
O relógio despertara às 6:05 da manhã. Ela acordou sobressaltada, com os cabelos da nuca molhados devido ao suor. Acordou ofegante, confusa, e logo desligou o alarme que insistia num som estridente e um tanto irritante.
Sentou-se na cama, ainda tentando entender o que acabara de acontecer. Estava sonhando com algo tão peculiar, tão saudosista – e mesmo assim, algo que ela nunca viveu.
Dirigiu-se ao banho, como de costume, com os pensamentos longe... Deixava a água cair sobre sua cabeça enquanto a testa apoiava-se no azulejo do box, e seus olhos acompanhavam as gotas que desciam livres pela parede.
Quem eram as pessoas de seu sonho?
Ela não fazia ideia de quem se tratava – seus rostos não apareciam nitidamente, apenas suas vozes e o diálogo que trocavam entre si.
Sorriu involuntariamente ao lembrar-se da criança aborrecida com um jovem, que parecia ser seu irmão mais velho. O garoto de aproximadamente dez anos estava visivelmente chateado, resmungando de braços cruzados enquanto aparentemente perdia uma partida de xadrez para o mais velho.
Eles possuíam a cor de pele semelhante, e o mesmo tipo de cabelo – o do mais velho era longo a ponto dos cachos prenderem-se num frouxo rabo de cavalo, enquanto o do mais era raspado dos lados e no topo da cabeça, os cachos se apresentavam timidamente, conforme um típico corte americano.
Apesar de se lembrar com riqueza destes detalhes, Yuna não saberia descrever os rostos mesmo que se esforçasse, pois os mesmos estavam embaçados, sem nenhuma nitidez presente – e de alguma forma, aquilo lhe afligia.
Enquanto tomava seu café, a médica tentava se lembrar do que exatamente eles conversavam em seu sonho, durante a partida de xadrez. Ela lembrava dos gestos do irmão mais velho, que apontava para as peças e explicava o jogo e as estratégias, enquanto o mais novo observava atentamente, parecendo gravar tudo na memória, com uma postura madura demais para sua idade.
A jovem riu sozinha pensando em como seria interessante se criasse uma história a partir de sua imaginação onírica, mas a risada foi interrompida por uma cena que atravessou sua mente naquele instante.
"Não quero mais jogar isso!" A criança reclamava, cruzando os braços e se virando de costas. O irmão mais velho riu e bagunçou os cabelos do mais novo – que tentou desviar do carinho, mas logo cedeu e virou de frente para si.
"Um dia você vai entender que xadrez é igual a vida." O caçula estava com o rosto virado para cima observando o irmão, que cutucou sua a testa com o dedo indicador e médio. O mais novo esfregou o local com rapidez e reclamou, mas logo começou a rir quando o outro o abraçou e iniciou uma sessão de cócegas, quebrando o clima aborrecido do caçula.
A cena na mente de Yuna se encerrou, e a mesma encarava o resquício de café no fundo da caneca que carregava em suas mãos. Estava com o olhar perdido, pensando porque cargas d'água teria um sonho tão inusitado como aquele.
Se espantou ao ouvir o celular vibrar com a mensagem de sua amiga desejando-lhe um bom plantão, e suspirou cansada. Não tinha dormido bem aquela noite, e mal esperava para que estivesse novamente em sua cama.
Arrumou suas coisas e em quinze minutos estava pronta, carregando sua mochila num ombro, enquanto colocava um casaco pendurado no outro braço. Estremeceu ao ouvir o trovão do lado de fora e bufou, pensando que seria um dia carregado de chuva.
Pegou as chaves do carro e se dirigiu à janela para fechá-la, e quase caiu pra trás quando viu um corvo a encarando, apoiado no parapeito.
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Bendição
SpiritualA peça de xadrez. A borboleta azul. O destino. Ele era um jovem bonito, alto, cabelos longos, cacheados e negros, e um pouco mais velho que ela - não mais que quatro ou cinco anos. E a imagem de seus olhos abertos, sem vida, encarando-a, não saía de...