O Desastre de Morchester

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Morchester Town - 2018

  -"Desastre de Morchester" é um apelido um pouco dramático para um time, você não acha? - Eu perguntei enquanto andava lado a lado com a garota. Não sei porquê insisto em chamá-la de garota já que ela deve ter por volta de 20 anos, mas algo na aura dela me lembra uma criança muito zangada.
A garota, Willow, apenas deu de ombros.
-Nosso antigo técnico costumava dizer que o nome sempre foi esse. -Disse, e apertou o passo. Dei uma meia corrida cômica para acompanhá-la. Eu era pelo menos um palmo mais alta que Willow mas, por Deus, como ela era rápida.
-Você se importaria de me dar um tour pelo lugar? -Eu perguntei com um sorriso. E, para meu espanto, a garota grunhiu e continuou andando em silêncio.
Eu estava há apenas algumas horas distante de casa, da minha amada Londres, mas por que eu sentia como se tivesse caído de cabeça em uma cidadezinha medieval onde eu era a forasteira indesejada?
  O que eu sabia era que Morchester Town não estava fazendo nenhum esforço para se colocar em melhor estima comigo. Cinza, úmida e fria, a cidade mais parecia um calabouço do que um lugar real, onde pessoas reais viviam.
Willow tentou abrir uma porta grande de madeira mas ela estava emperrada. Ela me olhou de esguelha, provavelmente se perguntando se eu tinha notado. Eu fingi que estava muito entretida encarando um quadro na parede oposta.
O quadro, –que eu agora realmente estava observando enquanto Willow tentava abrir a porta–, mostrava dois jovens, propriamente ingleses, em algum momento do pós Grande Guerra. Eles eram parecidos demais para não serem parentes. Irmãos, talvez.
  O mais baixo, vestido dos pés a cabeça com um traje formal bem cortado, mostrava um pequeno sorriso enquanto apertava a mão de seu companheiro, mais alto, e mais sorridente. Este estava vestido apenas com uma camisa branca e calça social, os sapatos pretos sujos de terra. Com a outra mão ele apontava para trás, para a antiga fábrica de tecidos Mosley's, que naquele mesmo ano viraria o centro de treinamento do Saintland Football Club, o mesmo centro de treinamento no qual eu me encontrava naquele exato momento.
  No quadro, Michael Mosley, fundador do time, e seu irmão Samuel sorriam para mim. Mas algo parecia errado. Tudo naquele lugar parecia tão horrivelmente errado. Mas eu só teria como saber o porquê uma vez que começasse a pôr a mão na massa.
  -Ei, dona... -A voz de Willow me trouxe de volta a realidade, ela parecia ter, enfim, consertado a porta. Eu a segui.
  O pátio para o qual a porta se abriu era, na verdade, muito mais bem cuidado do que eu podia imaginar, levando em consideração o estado do resto do CT. Era um pátio agradável, mesmo com o clima horrível e deprimente de Morchester, e se estendia longamente, compreendendo um campo de treino e uma quadra de futsal. Eu levantei meu telefone e tirei o que provavelmente foi a milésima foto do dia.
  -É o seguinte, dona, não é só porque o Darius deu pra trás em te acompanhar na "tour pelo hospício", que eu tenho a obrigação de ser sua babá. -Willow disse se virando para mim, a voz afetada, os braços cruzados sobre o torso franzino. -Se você ficar me atrasando o tempo todo, eu vou simplesmente te abandonar e me divertir enquanto assisto você se descabelar no meio desse lixão. -Ela voltou a andar, murmurando para si, mas alto o suficiente para que eu pudesse ouvir "de  sapatos de salto... em Morch..."
  Sendo sincera, eu não podia negar que a tempestuosa Willow tinha razão, meus sapatos se provaram perfeitos para um delicado outono londrino, mas um dia em Morchester já tinha feito com que eu reavaliasse todo o meu guarda-roupa. Sem que a garota visse que eu mais uma vez tirei meu telefone do bolso, abri minhas notas e escrevi, em letras enormes: TRAZER SAPATOS CONFORTÁVEIS!
  No começo eu tinha pensado que voltar para Londres após apenas uma semana era exagero, mas agora já notava que seria mais do que necessário. Além de visitar Nana e entregar para meu redator as primeiras notas da minha matéria sobre o multi-perdedor Saintland Football Club, eu provavelmente ia ter que pegar uma capa de chuva... e galochas. Uma semana subitamente me parecia um tempo enorme para estar longe de casa.
  Willow finalmente parou de frente à uma porta igual a todas as outras, e bateu levemente. De lá de dentro uma voz risonha perguntou a senha.
  -Que tal "vou enfiar minha mão tão fundo na sua bunda que vou fazer cócegas na sua úvula?" -Willow resmungou. Era bom saber que ela odiava a todos igualmente. Eu de repente me senti parte de um grupo não-tão-seleto de pessoas que irritavam a garota.
  Risadas vindas do outro lado da porta. E a mesma voz dizendo: -É Will, você acertou a senha como sempre!
  -Harvey... Se for o Darius que está aí dentro com você... -Willow disse friamente. Mais risadas.
  Darius, era a pessoa que devia ter me apresentado o CT e me levado até a primeira entrevista, mas que nunca apareceu, me deixando com a pequena irlandesa raivosa. Foi ele, ou melhor dizendo, o advogado dele, que me contatou e pediu que eu considerasse fazer a matéria sobre o Saintland. Foi um golpe do destino, uma vez que eu já estava me preparando para vir para Morchester de qualquer jeito. "As coisas são como elas são, e não como elas não são." Nana costuma dizer, o que não faz nenhum sentido, até começar a fazer.
   Willow esmurrou mais uma vez a porta. Ela era uma garota franzina, de talvez 1,60m, com cabelos pretos lisos amarrados com um prendedor muito apertado, e usando o uniforme do Saintland da cabeça aos pés (exceto pelo tênis cor-de-rosa-bebê que provavelmente já eram velhos quando a menina nasceu), sua pele pálida e coberta por sardinhas minúsculas. Diferente de mim, eu não via um único traço de maquiagem, ou um único acessório, apenas um crucifixo de ferro pequeno em uma corrente de couro. As sobrancelhas grossas pareciam constantemente franzidas, e as bochechas coradas pelo frio.
   Pode ser estranho admitir, e talvez eu tenha mesmo aquela loucura nas veias que supostamente corre na minha família, mas eu estava mesmo começando a me afeiçoar àquela bola de raiva que era Willow. Eu não sabia exatamente o que era, mas algo em toda aquela marra me era familiar.
  A porta finalmente se abriu e um homem sorriu amplamente para nós. Ele era alto, mais alto que eu, e isso dizia muito. Seus ombros eram largos, e os olhos pequenos e traiçoeiros. A pele marrom avermelhada, pouco mais clara que a minha, e brilhava de suor. Ele usava uma camisa do Saintland. Uma peça da moda por essas bandas.
  -Ah, Willow... -Ele disse bagunçando os cabelos da garota. Pelo pouco que eu a conhecia, aquilo já me pareceu um erro. -Como é bom ver seu rosto radiante para animar minhas manhãs!
  -É algo como paralisia do sono, tenebroso, assustador e um pouco... excitante? -Outro homem disse de dentro da sala. Ele era baixo e atarracado, a pele branca com sardas grandes e os cabelos loiros como palha, a boca pequena, afeita a sorrisos.
  -Will... -O mais alto disse dando um passo pra trás, e fazendo um movimento de respirar fundo. -Lembra o que o Capita disse, você tem que contar até 10. Lembra?
  Quando eu voltei meus olhos para Willow, seu rosto pálido tinha virado uma máscara de ódio vermelha, os punhos cerrados até os nós dos dedos ficarem brancos.
  -DARIUS! -Ela berrou, e partiu na direção do loiro no fundo da sala. Então aquele era o Darius. O que fazia do homem na minha frente...
  -Harvey Paxton. Mas pode me chamar de Harv. -Ele disse estendendo a mão. Eu a apertei no segundo em que Darius saía por uma porta adjacente, tentando se proteger dos socos que Willow distribuía em sua direção. -Você já conheceu minha boa escudeira, Willow Croy. E aquele fugindo dela é o Darius, Darius Mosley.
Mosley? Um herdeiro provavelmente. Interessante. O advogado de Darius não mencionou isso.
  -Ora, ora onde estão meus modos? -Harvey disse dando um tapinha em sua testa. -Venha, por favor. -Eu adentrei a sala com ele. Duas cadeiras estavam dispostas uma na frente da outra. -Uma jornalista de verdade interessada no nosso Desastre de Morchester... incrível. Você deve ter muitas perguntas. -Ele  sorriu e algo no seu sorriso estava errado. -Devemos começar? Eu sou um livro aberto!
  Eu não acreditei em uma palavra.

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