Acatalepsia

Cutty Sark

Uma de suas características mais proeminente seria seu grande apreço por Cutty Sark. Ele sempre tinha uma garrafa de uísque por perto para lhe fazer companhia.

Lembro-me perfeitamente do ambiente em que ele sempre se encontrava. Salas escuras sempre iluminadas por luzes de mesa, sentado e inclinado sobre mais uma literatura. Não sei se foi o uso do álcool e tabaco prolongado ao longo dos anos ou os estranhos livros que lia e viagens que costumava realizar, desaparecendo por vezes durante meses, sem quaisquer sinais de vida para então voltar a aparecer sem qualquer satisfação a dar.

Qualquer que seja o verdadeiro motivo, não demorou muito para a polícia definir que a causa mortis fora suicídio. Eles encontraram o corpo de Crawford Chandler dilacerado pelas rochas e pelo mar num rochedo perto de sua mansão, em Arch Cape, Oregon, não muito longe de onde vivo.

A única pista encontrada fora a mesma que levou ao início das buscas, alguns dias antes de encontrarem seu corpo, uma nota deixada pelo próprio, trazendo à tona seus motivos e decepções em vida que o levaram a cometer tal atroz ação. Motivos estes um tanto genéricos para alguém tão excêntrico, devo confessar.

Nenhum de nós tinha uma relação propriamente dita com meu tio. Ele possuía uma figura taciturna e por vezes arrogante. Tenho certeza que muitos viram tal situação não com tristeza, mas sim como oportunidade de aumentar mais um pouco suas fortunas com a herança por ele deixada.

Contudo, não posso negar que senti uma pontada de tristeza em meu coração. Foi a primeira vez que presenciei a morte de tão perto, além também que meu tio era, de certa forma, querido para mim. Durante as poucas vezes que acabei por visitá-lo acabei por desenvolver certa admiração por sua figura peculiar. Eu passava, muito raramente, alguns dias em sua casa, quando meus pais estavam demasiado ocupados ou longe numa viagem.

Por trás do véu que o encobria, véu este de solidão e agrestia nas palavras e parecer, havia uma mente perturbada pelo desejo do saber e pela atração ao desconhecido, ou até atrevo-me a dizer, pelo oculto e pelo esotérico. Lembro-me de nomes singulares em suas estantes, como Blavatsky, Bailey, Kardec ou Crowley. Lembro-me livros cujos nomes traziam a repulsa, outros o medo, enquanto outros se mostravam indecifráveis aos olhos de uma mera e tola criança, facilmente impressionável. Mesmo assim, eu podia sentir certo tom de verdade por detrás de suas palavras, quando as raramente proferiram.

Quando meu tio falava todos víamos apenas palavras sem nexo ou sentido, ditas por uma mente embebida em uísque e demasiados livros de ficção escritos por charlatões e por mentes perturbadas por coisas que não existem. Porém, com o passar do tempo e com o aumentar de minhas visitas passei a ver com outros olhos tais discursos. Infelizmente, penso neste exato momento, que talvez meu interesse tenha se revelado tarde demais.

Estes pensamentos voltam a abordar-me enquanto olho para o caixão fechado, que se encontra à minha frente. Feito de carvalho e com adornos dourados, prestes a adentrar o mausoléu da família.

Eu encontrava-me atualmente em seu funeral. Posso dizer que era um funeral por título, mas por conteúdo nada mais era do que uma reunião de negócios, já que meu tio não possuía mulher, muito menos filhos. Parentes vieram de todos os lugares, demandando sua parte da fortuna a qual, que a verdade seja dita, nenhum deles realmente precisava.

Dei uma última vista de olhos pelo caixão antes de me virar e voltar para o mais próximo que eu tinha de conforto naquele momento: a minha família, que também se encontrava engajada em discussões sobre sua parte do que lhes seriam herdados. Talvez, além de empreendedorismo e espírito para os negócios, os Chandler também fossem reconhecidos pela sua mesquinhez e insensibilidade, com exceções, tal como meu tio ou eu.