Por ela, viu um vasto cenário que se estendia até quase o olhar não conseguir o tocar, uma imensidão que jamais tivera consciência. Uma cálida luz misteriosamente a puxava, por um momento ponderou tocá-la, mas o medo a dominou. De imediato a parede retornou à sua opacidade, deixando somente uma quase imperceptível fissura. O que era AQUILO? O que tinha acontecido? Seria o mundo antes do Grande Colapso? Após ele com certeza não poderia ser, porque o que vira não se parecia em nada com a massa cinzenta e disforme do pós-colapso sempre mostrada aos residentes de Às.
Pensou que não seria prudente contar a alguém o que vira, pensariam que estava tendo delírios e a mandariam imediatamente para a Sala de Cura, a fim de receber bálsamos e acalmar os pensamentos. A medicina de Às era conhecida por sua eficiência, os bálsamos tinham tamanho efeito, que os residentes que o tomavam não lembravam sequer dos males que os tinham mandado para a Sala de Cura. Se havia algo a ser descoberto, ela deveria descobrir sozinha.
Continuou seu caminho para o posto de trabalho, os pensamentos estavam a mil, porém não devaneava, pelo contrário, se sentia desperta. Precisava agir como de costume para não atiçar suspeitas, enquanto decidiria seu próximo passo. Sentou-se na sua baia, sua tarefa consistia em verificar todos os mostradores diários dos receptores de energia solar, havendo qualquer fuga do padrão, tal fato deveria ser comunicado aos Menestréis de Às. Ninguém gostava de ser mal visto por um menestrel, e com isso, talvez ser motivo de irritação a alguém do Ministerium. Como outrora fora ensinada, o princípio de Às era a organização, uma grande teia onde cada um deveria desempenhar com diligência o seu papel, para assim manter o bem-estar de todos e a sobrevivência do laboratório, afinal, eram especiais. Especiais... tal palavra rolou por entre os diversos pontos de sua mente. Sentia-se de fato especial ali?
Nunca questionara tal sentimento antes, na verdade, nunca sequer cogitara questionar qualquer coisa da organização do laboratório, ali era a sua casa, e família não se questiona, não é verdade? Não foi assim que fora ensinada? Por que tais palavras a incomodavam tanto agora?
Enviou alguns relatórios de funcionamento dos receptores na madrugada. Mesmo com a tarefa ocupando a sua mente, não conseguia parar de pensar na imagem vasta, quase infinita, vista no corredor. E se de fato existisse outro mundo atrás das paredes do laboratório? Não poderia ser... pensara; assumir tal constatação seria pôr à prova tudo o que a moldara. Não poderia contestar a ocorrência do Grande Colapso, poderia? Mas, e as vozes? Não poderiam ser de pessoas lá fora? Caramba! Lá fora... era nisso mesmo que pensara: poderia haver mais sobreviventes do os que residiam ali! Estava decidida, não havia mais a possibilidade de existir com essa dúvida. Terminaria o turno de hoje, aguardaria todos se retirarem para a Sala de Encontro e com o corredor vazio tentaria achar a janela transparente. Se a vira uma vez, de certo a encontraria novamente.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Uma Fissura na Parede (um conto)
Short StoryPelo o que lembra, Ellara sempre viveu dentro do Laboratório Às, uma estrutura criada para abrigar todos os sobreviventes do Grande Colapso que ocorreu há alguns séculos antes de nascer. Não existe mais um mundo exterior, os residentes e as paredes...