1. O Sonho

18 3 0
                                    

Até ontem achava que seria mais um dia como todos os outros, pensara Ellara, porém o sonho que tivera esta noite não desvanecia de sua mente e a enchia de perguntas: como poderia haver um lugar como aquele quando tudo que conhecia eram as paredes brancas do Laboratório Às? Nascera ali, e aquilo era tudo o que possuía no mundo, não havia outro lugar habitável além de Às, todo o restante sucumbiu e dissipou numa fétida massa cinzenta muitos séculos antes dela, eram especiais, os únicos sobreviventes; pelo menos era o que sempre a contavam desde pequena. Por que haveria de questionar logo agora a estrutura e segurança daquelas brancas paredes que sempre a acolheram? Deixou que a água corresse sobre si na tentativa de limpá-la daqueles pensamentos. No refeitório se encontraria com os outros, e as tarefas cotidianas que a ocupariam pelo resto do dia com certeza a livrariam dessa sensação.

Caminhou como sempre pelos estéreis corredores, mas dessa vez, eles pareciam observá-la, ou seria somente coisa da sua imaginação? Respirando fundo, acalmou o passo e olhou em volta na busca de ver o mesmo cenário de antes; e era: intermináveis e lisas paredes alvas, todavia, um quase imperceptível murmúrio vinha através delas. Ai meu Deus, só podia estar louca!

Já no refeitório, pegou o seu prato e sentou à borda do salão. Dali poderia observar todas as mesas e ver se algo anormal estaria de fato acontecendo. Os residentes pareciam absortos em suas conversas como sempre, nenhuma tensão pairava no ar, como quando acontecia de receberem avisos de tempestade cinza, e todos precisavam juntar esforços para manter os escudos de proteção em pleno funcionamento e ativados no último nível. A tempestade era ácida e a tudo corrompia, todos sabiam.

Comeu e trocou trivialidades com a senhora da Sala de Cura que sentara à mesa minutos depois. Ela lhe contara, que após a Sala de Exercícios ser reativada, tinha recebido cada vez menos residentes em seu setor, e lhe aconselhara uma visita à sala reaberta, a fim de espairecer os pensamentos. Ficou intrigada de imediato, será que ela poderia saber dos murmúrios?

E, foi com esse pensamento que adentrara os corredores caminhando sentido ao seu posto de trabalho. Por padrão tomaria a rota mais curta, mas, cedendo à sua mente, pegou-se seguindo pelo caminho que levava onde ouvira os intrigantes ruídos de antes. Se havia algo diferente, ela queria vê-lo. Estancou no mesmo ponto, a alvura e perfeição das paredes já não chamavam tanto a atenção, pois agora os zumbidos estavam ainda mais fortes e quase tomavam conta dos seus ouvidos completamente. Olhou para os lados, alguém seguia adiante, acabara de passar por ali, mas provavelmente este não tinha notado qualquer diferença. Voltou-se à parede, fixou o olhar concentrando sua atenção... os murmúrios foram ficando mais claros, vozes, sim, eram vozes, claras e quase distintas! De súbito abriu os olhos, e por um relance a opaca parede à sua frente tornara-se transparente.

Uma Fissura na Parede (um conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora