A Bruxa

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As vilas há muito tempo tornaram-se locais hostis, por baixo de cada pedra e grão de areia por onde os povos andavam, havia perigo espreitando. Saques, assassinatos, estupros, pobreza. A maldade e o sofrimento se espalhavam por todos os lados, mesmo ali dentro daquele ventre.

- Essa maldição de bebê não para de chutar a merda das minhas costelas! Eu odeio essa criança! - A mãe gritava, dia após dia, noite após noite, com o desejo de uma faca enfiada no útero rondando a mente. O fruto se remexia ali dentro, alheio ao ódio, alheio as palavras.

Mas as luas passam e o sangue daqueles que as esperavam desce.

Gritos foram jogados à madrugada, até que por debaixo das pernas o chorinho esperado não veio. Nasceu calada, parecia na verdade morta.

- Nasceu? - A mãe perguntava ofegante, com os olhos espremidos enquanto sua mão segurava no lençol manchado todo o restante de sua força.

A parteira veio calma, enrolou a pequena em uma lã lavada e trouxe sua figura para perto de sua criadora. O efeito foi instantâneo, a criança não chorava, mas sorria. Os pequenos olhos de gato ladino, a cabeça cheia de escorregadios fios negros, e nos lábios uma curvatura inocente, tentando achar o amor da mãe e encontrando apenas um rosto vazio, renegando com o olhar sua própria criação.

- Tire ela daqui. - Resmungou ao passo que deixou o sono a embalar.

Quando a noite mais uma vez veio a cair e a lua cheia continuava forte no céu negro, as mãos trêmulas enfim seguravam sua herdeira em mãos, a qual dormia serena, sonhando com aquela luz prateada que vinha de longe.

Os passos iam ligeiros, atravessando o piso de madeira velho e mofado do casebre que ja vinha caindo aos pedaços há alguns anos e indo pela rua quase vazia, caminhando quase cega, guiada apenas por um sentimento profundo de arrependimento.

Foi em um beco escuro e sujo, enfeitado com lixo e ratos, que a mãe achou o novo berço para sua então filha, deitando-a em cima de uma caçamba e protegendo-a apenas com um trapo rasgado.

Não falou, não sorriu, não lamentou. Apenas ficou ali por alguns minutos observando. Era tão linda, poderia ter tudo, mas isso eram só pensamentos.

Foi ao virar-se para enfim abandonar e esquecer tudo que o som veio, desesperado e alto, quase engasgando na garganta.

- Raios! Não chorou antes, por que há de chorar agora? - Falava a humana, cobrindo as orelhas e olhando só mais uma vez para toda aquela bagunça, acabando por partir com os mesmos pés que a trouxe até aqui.

O berreiro continuou por todo o resto daquela alvorada fria, até saudou o sol e continou cantando com alguns pássaros vagabundos. Não cansava, não perdia o fôlego, só chorava tudo que sabia que tinha que chorar.

Enfim, veio quieto como os ratos e rasteiro como as cobras, de pés descalços e uma longa barba tocando-os sutilmente, livros em mãos e um olhar preocupado, procurando de onde vinha aquele pedido de socorro gasguito.

- Pelos deuses! Uma criança! - O velho Yomu veio calmo, largando os livros ao chão e logo envolvendo aquele pequeno amontoado de berros em seu colo. - Quem seria capaz de abandonar algo tão inocente e puro?

E assim, inesperado como veio, o desespero se foi. Deu espaço àquele mesmo sorriso de antes, um desdentado saudoso.

- Você so precisava de atenção, não é mesmo? - O sábio ria, totalmente enfeitiçado pela pequena criatura em seus braços, levando-a consigo sem dúvidas no andar e deixando os livros jogados para trás.

15 anos depois.

- Eu ja li esse livro mais vezes que você, pai. - A garota dizia num tom convencido, enquanto remexia preguiçosamente no acervo de frascos e poções de Yomu.

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