Capítulo 2

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Era noite alta, e Gabrielle não parava de se revirar na cama. Tudo bem que seu corpo estava dolorido depois de tudo que aconteceu na feira, mas sua cabeça visualizava, a cada piscada, os corpos dos soldados caídos, ensanguentados e imóveis.

Ela procurou ignorar o que aconteceu, mas, quando chegaram em casa e, durante o jantar, Bernard reafirmou suas convicções quanto ao alistamento, a paz que ela esperava não aconteceu. Francesco ficou vermelho e, como o vulcão que era, explodiu, dizendo que, se o filho queria se matar, bem que poderia nem ter nascido. Sophia se sentiu ofendida, Bernard saiu da mesa de jantar e Gabrielle revirou a comida no prato esperando que a gororoba da mãe ficasse comestível.

Como se as coisas não fossem difíceis o bastante, Bernard ainda tinha que complicar. Era tão típico dele causar problemas que Gabrielle resignou-se. Pelo menos até aquela hora, no meio da madrugada, quando a insônia estava deixando-a louca. Ela odiou-o naquele momento.

As cobertas sufocavam-na, o escuro deixava-a inquieta, e Gabrielle não aguentou mais. Pulando da cama, ela saiu do quarto em silêncio e no escuro, rezando para não tropeçar e quebrar nada. Ela tateou pelas paredes a princípio, mas percebeu certa luminosidade vazando pelas frestas da porta da cozinha. Com a raiva que estava, esperava que fosse Bernard, para poder dizer-lhe poucas e boas.

Ela hesitou ao se aproximar da porta, não queria ter que consolar a mãe ou ignorar o pai quando estava se sentindo tão irritada. Entretanto, naquela hora da noite, não havia nada melhor para se fazer e, talvez, nada demais acontecesse.

Ao abrir a porta da cozinha, congelou.

Não era ninguém de sua família que estava na cozinha, mas um homem, semioculto em sombras, que cortava displicentemente um pedaço do pão duro de sua mãe.

Ele congelou, a faca pairando a centímetros do pão. Gabrielle também foi incapaz de se mexer, calculando a velocidade em que ele poderia alcançá-la ou jogar a faca. Pensou em gritar, mas tinha certeza de que sua voz não passaria de um fiapo se tentasse.

O homem desceu a faca devagar até a bancada, sem tirar os olhos dela. Gabrielle segurou firme a maçaneta da porta, testando os joelhos para correr e fechá-la atrás de si. O contato visual não cessava, e ela podia jurar que seus pais seriam capazes de ouvir seu coração esmagando as costelas.

O homem deu um minúsculo passo, e Gabrielle tentou se mexer e não conseguiu. Desesperou-se. Abriu a boca e inflou os pulmões.

— Não grite — ele disse, muito baixo. — Por favor, não grite.

Gabrielle apertou ainda mais a maçaneta e respirou fundo.

— Por favor, não... — ele tomou fôlego, como se fosse difícil falar. — Eu tenho fome.

Ela franziu levemente a testa. Para um homem que dizia ter fome, ele não estava nada maltrapilho. Pelo menos naquela luz suave de uma única vela, ele parecia bem vestido o suficiente para poder pagar por comida em Travessa.

— Há uma vila mais a diante na estrada, tenho certeza de que vai achar comida lá — ela conseguiu dizer, baixo, oscilante, sem querer ofender o homem.

— Eu fui assaltado na estrada, estou sem dinheiro.

— Ah.

Eles ficaram em silêncio por um momento, e Gabrielle girava as engrenagens furiosamente em sua cabeça, pensando no que fazer.

— Por favor, não grite — ele pediu novamente.

— Como entrou aqui?

— Pela porta dos fundos, estava aberta.

Reino em Chamas - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora