Reino em Chamas - DEGUSTAÇÃO

Prólogo

O bosque naquela hora da manhã não era nada além de silêncio. Próximo demais dos sons da estrada para atrair animais, os poucos seres que se arriscavam fugiam logo com os sons das rodas no caminho de terra. A luz, que penetrava entre as folhas das altas árvores, era difusa na neblina matinal e mais parecia cenário de contos de fadas do que de um simples bosque.

Gabrielle suspirou ao se apoiar no batente da janela.

Sentia falta de outra paisagem, aquela de ruas de paralelepípedos e casas coloridas, as pessoas apressadas em seus afazeres, os cheiros e sons que só uma cidade pode propor. Ali, naquele bucólico fim de mundo, ela sentia-se vazia e incompleta.

Não gostava muito de ter se mudado para onde se mudou, mas, às vezes, as circunstâncias obrigavam as pessoas a se tornarem o que não são.

Gabrielle crescera numa villa abastada na Capital, cercada de luxos, como a pessoa bem nascida que era. Seu pai era um rico comerciante, que se casou com a filha única de um conde meio falido apenas para herdar status e título. Corria à boca miúda que seu avô não queria que o título passasse para a filha, mas seu pai poderia ter sido persuasivo o bastante para conseguir. Para Gabrielle, essa persuasão se chamava dinheiro, e seu pai tinha isso aos montes para conseguir o que quisesse.

Foi então que sua família teve início, um homem muito rico, uma condessa muito bela. Sobravam festas, faltava amor, mas a relação funcionava, exatamente como deveria ser entre os membros dessa parcela da sociedade.

Logo em seguida, veio o herdeiro, um robusto menino de faces coradas e cabelos dourados, como a mãe. Bernard, o mais precioso dos filhos da Capital – pelo menos na perspectiva de seus pais.

Nunca viram antes um homem tão seco como Francesco deitado no chão com o filho, brincando com os soldadinhos e cavalos de madeira, ao mesmo tempo que nunca se viu uma mulher tão enojada como Sophia carregando o filho no colo. Foram felizes naqueles anos, os três naquela mansão da Capital, rodeados do melhor que o dinheiro pudesse comprar.

E então Gabrielle nasceu, de cabelos castanhos como o pai, uma boneca de tão delicada. Sua mãe se deleitava com as ideias da modista, em como a vestiria quando maior, enquanto seu pai pensava em como conseguir um casamento vantajoso, mesmo com tão pouca idade.

Entretanto, logo notou-se que de boneca Gabrielle não tinha nada. Voluntariosa, a menina equiparava-se ao irmão nas travessuras, tornando claro aos pais que as babás não suportariam o trabalho por muito tempo. Ela tinha a mania de sumir pela casa, escondendo-se na mobília e fugindo quando encontrada. Às vezes, fugia para a rua e voltava suja e arranhada, como se tivesse se engalfinhado com um gato.

O pai batia, a mãe ralhava, o irmão ria, e assim foi por um tempo.

Quando Bernard ganhou um tutor, ela se escondia na sala e ouvia a aula, oculta de olhos curiosos. Não era de bom tom que uma mulher soubesse tanto de tantos assuntos, então suas aulas eram restritas ao básico da alfabetização e alguns conceitos matemáticos. Mas Gabrielle não se contentava, e logo o tutor, por pura empatia, convenceu seu pai a permitir que assistisse às aulas.

Afinal, se as aspirações matrimoniais de seu pai dessem frutos, Gabrielle teria que ser muito inteligente e estudada, já que beleza não lhe faltava.

Havia algo de mágico na astronomia, no conhecimento da natureza, na álgebra e na literatura que ela não podia entender. Logo, mostrou-se mais rápida no aprendizado que seu irmão e começou a incitá-lo a melhorar. Em pouco tempo, eles rivalizavam nas aulas, e o professor sentia-se orgulhoso de ver dois alunos tão aplicados e inteligentes. De todos os seus alunos, eles tinham o maior potencial.

Já na equitação, Gabrielle fracassava enquanto seu irmão exalava imponência. Ela não entendia a postura, tinha medo do cavalo disparar, não gostava do cheiro do animal. Tornou-se uma amazona respeitável, mas, se o cavalo começasse um galope, logo se desesperava. Talvez isso não fosse seu melhor atributo, mas ela fingia com maestria.