Lucinde e Gaviel

A névoa estava densa naquela tarde, a silhueta feminina envolta em panos vermelhos mal se destacava. A foice que deveras parecia ser extremamente pesada, era carregada por ela como uma pluma.
Visualizar seu corpo dançando entre o campo enevoado era uma visão dolorosa, ela exalava luxúria.
Como filha de Lilith, Lucinde possuía todo o charme de sua mãe, mas não só disso vive uma súcubo. Ela caminhava pelo Limbo a procura de almas perdidas.
Caminhava já a três dias, não havia encontrado nada que realmente valesse a pena, até que o avistou.
Parado como um monumento, um ser de cabelos morenos e feições delicadas emitia graça por todos os lados. Estava guardando um enorme portão de ouro. Nada se podia ver do que havia atrás daquele misterioso portão.
Mesmo que se mantivesse em guarda, aquele rapaz parecia que não via nenhum ser vivo há vários anos.
Ele era alto e de uma beleza anormal, mas o que realmente chamara sua atenção era as asas translúcidas que saiam detrás de suas costas. Um anjo.
Lucinde conhecia a história, o anjo que guardava o jardim do Éden. Gaviel.
Viu naquele momento uma grande oportunidade, Lilith com certeza a reconheceria se fizesse um anjo de alto escalão como aquele cair.
A partir daquele dia, ela iria fazer de tudo para seduzi-lo.

Gaviel não mais se lembrava de quanto tempo vivia ali, não tinha contato com formas de vida além de almas penadas e monstros antigos já quase em esquecimento.
O limbo era vazio, triste. E sua missão era viver ali, guardar o precioso Éden.
Sonhava com o dia que poderia viver junto do Criador novamente. Sentia-se abandonado, mas, mesmo com esse sentimento não caíra, pois amava a Ele acima de tudo e de todos.
No dia em que a avistara, mantivera-se sereno e tranquilo, a luxúria não o afetava. Reconhecia sua beleza, os cabelos negros de grande volume formavam ondas sobre o corpo fino e delicado, os olhos eram vermelhos, cor de sangue. Detalhe esse que se destacava no rosto moreno.
Desde que ela aparecera por ali, tentara conversar com ele, cantara e dançara ao seu derredor, fazia de tudo para interagirem.
Gaviel continuava sereno aos ataques luxuriosos e palavras indignas que Lucinde pronunciava, mas se aproveitava de sua companhia, pois há muito não se sentia tão acalentado. Por ela havia tomado afeição.
Não se importava com o tipo de ser que ela era, ensinava-lhe bons princípios, contava histórias do início de tudo, dos tempos de glória. Lucinde a cada dia se tornava mais importante para ele.
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Ela a cada dia se via mais frustrada, não conseguia chegar nem perto de corromper o coração do anjo, ele sempre se mantinha neutro a tudo e sempre ignorava suas investidas. Já tinha desistido de tentar, mas porque não conseguia ir embora?
Sentia que ficaria um grande buraco em seu peito caso fosse. Era a primeira vez que sentia algo assim, era conhecedora da luxúria, mas não do amor.
Sentia medo, era um ser das trevas, e ele um anjo do Senhor. Ficaria para sempre sozinha com aquele sentimento a lhe agoniar.
Com o tempo, suas conversas com o anjo mudaram de rumo, já não mais tentava seduzi-lo, suas palavras tornaram-se doces e tranquilas.
Havia passado quase um ano desde que o encontrara, e Lucinde sabia que devia ir embora.  Aquele seria o último dia em que ficaria ali.

Gaviel a observava atentamente, ela parecia diferente. Os olhos escarlates transmitiam tristeza e, ela evitava que cruzassem com os seus. As bochechas coravam a cada sorriso seu, e ele sabia que algo estava errado.
Seu coração doía, sabia que tinha ternura por ela, ele a amava. Não como o Criador, mas reconhecia o sentimento.
Ele sabia que a perderia cedo ou tarde. Em seu íntimo sabia que devia contar a ela a verdade, mesmo que a relação entre eles fosse um tabu. Um anjo não sabia mentir.
Acariciou o rosto delicado da mulher ao seu lado, já não mais enxergava uma espécie, e sim a mulher que amava.
Sentia os olhos tristes se encherem de espanto ao sentir seu toque, e seu coração se aqueceu quando ela aceitou seu toque.
Ela o abraçou e sentiu as lágrimas escorrerem pelo seu rosto, sentiu que deveria acalentá-la, apagar suas lágrimas.
Ali os dois ficaram, até que o desejo os consumiu, nenhum dele conseguia resistir a tentação de ficarem juntos. Eles não queriam resistir. E nessa única noite se amaram.
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Pela manhã Lucinde partira. Deixara Gaviel sem que o mesmo percebesse.
Tinha de deixá-lo e voltar ao inferno. Lilith jamais poderia saber do paradeiro de seu amado, e nem de sua relação com ele.
Após alguns meses que ela voltara, começou a sentir-se mal. Tinha enjoos e desejos que não conseguia controlar. Uma terrível suspeita se apoderou dela. E se estivesse grávida?
A palidez tomara conta de seu rosto. Nada mais que a morte os esperaria se fosse verdade.
Precisava encontrar com ele, contar-lhe. Mas tinha medo.
Sua amiga Mirelle notava sua inquietação, e dia após dia ficava a questionando. Era difícil imaginar que uma súcubo sucumbiria a uma doença de humanos.
Lucinde a enganava sempre, mas não poderia esconder a barriga que estava por crescer.
Depois de um mês em total desespero, decidiu que voltar a ver Gaviel.
Seguiu durante o primeiro raiar do Sol, quando todas suas irmãs estariam dormindo. O caminho para o Limbo nunca fora tão árduo. Sentia o corpo pesado, fome e enjoos.
Na metade do caminho já não sabia se conseguiria chegar, o que quer que fosse que estava dentro dela, sugava todas suas energias.
Precisou dormir por cerca de três dias para recuperar um pouco de força para continuar a jornada.
Caminhou por mais quatro dias até que viu os grandes portões de ouro. Ao ver o seu amado sentado no chão em frente ao portão, Lucinde caiu. Já não tinha como se manter acordada. A vista escureceu e ela dormiu.
Gaviel levantou os olhos a tempo de ver Lucinde cair, achou que estivesse alucinando de novo com sua presença, mas aquela cena não era como seus sonhos. Correu ao seu encontrou, e se chocou diante da vista apática de sua amada.
Os cabelos negros grudavam na pele suada, olheiras profundas tomavam conta de seu rosto, sua pele estava pálida e os lábios ressecados. Como aquilo acontecera? Haviam passado somente três meses.
Ele a pegou no colo e a levou a frente dos portões. Deitou-a com delicadeza no chão.
Tentara a todo custo acordá-la sem sucesso, sabia que devia conseguir água e comida, para que ela se recuperasse mais rápido.
Mas no Limbo não tinha alimento, era só o vácuo e a névoa, o lugar mais próximo seria a dias de caminhada.
E tinha o Jardim.
O pensamento abominante tomou conta de sua cabeça. Não deveria adentrar o Jardim, a não ser por situações excepcionais. Ajudar um demônio talvez não fosse uma situação a que o Criador aprovaria.
Mas Lucinde não era só um demônio, ela era uma mulher curiosa, alegre e era quem amava.
Não podia deixa-la morrer.
Fechou os olhos e respirou fundo, passou as mãos mais uma vez nos cabelos dela.
-Eu volto logo.
Gaviel enfim estendeu sua lança para os portões, eles se abriram silenciosamente como se estivessem sendo utilizados todos os dias e não sempre fechados.
Em passadas firmes entrou no Jardim.
O Éden era o local mais lindo em que estivera, os lagos cristalinos rodeavam campos onde vários tipos de animais -incluso os que nunca conhecera- viviam. Árvores frutíferas se encontravam em todos os cantos e tudo convivia em harmonia.
Ao seu ver o Jardim nunca havia sentido a falta dos humanos.
Ele se voltou para uma árvore com frutas amarelas, pareciam ser o suficiente para repor os nutrientes de Lucinde.
Pegou algumas folhas e galhos e, habilmente montou duas cestas, umas para que levasse frutas e outra para água.
Colheu o que achava ser necessário, e, ao abaixar perto de um rio para pegar água, viu um colar em uma pedra abaixo d’água. Não sabia como havia parado ali, mas ao ver o pingente mais de perto percebeu o aviso do Criador.
Uma cobra enrolada em uma rosa. O bem e o mau coexistindo. Pegou o colar e o pôs no pescoço, teria tempo para pensar sobre ele.
Colocou as duas cestas sobre os ombros e saiu do Jardim. Não mais voltaria ali, sentia que os portões nunca mais se abririam para ele.
Correu até Lucinde e deitou sua cabeça em seu colo, fez com que bebesse água aos poucos, até que a cor voltasse ao seu rosto.
Demorou algumas horas até que acordasse. Parecia fraca e, assim que conseguiu sentar deu-lhe as frutas que havia colhido.
Ela as comeu avidamente e suas bochechas ruborizaram ao ver seu olhar. Se endireitou rapidamente sobre os joelhos. Eles precisavam conversar.

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⏰ Última atualização: Jul 15, 2020 ⏰

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