Prólogo: Reencontro

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Kim Changkyun partiu em uma tarde fresca de primavera. Estava com 92 anos e sentia seu corpo cansado. Viveu uma vida plena e feliz, construiu uma bela família ao lado de sua companheira que partiu primeiro com a promessa de que o esperaria do outro lado pois seu amor era transcendental. Estava deitado na espreguiçadeira em seu jardim e levaria um tempo até que seu filho ou um de seus netos notasse que havia ido embora, mas tudo bem, estava tranquilo e satisfeito.

Deixou seu corpo para trás, o invólucro que o permitiu experimentar tudo o que teve vontade, coisas boas e ruins, prazerosas e dolorosas, era muito grato a ele, mas não faria falta. Com a idade que tinha aprendeu a se desprender das coisas, a deixá-las onde deveriam ficar. Agora não precisava mais de sua velha casca.

Olhou para trás uma única vez para se despedir de sua casa, tantas lembranças ali.

O Ceifador que o esperava era paciente e mais bonito do que achava que seria. Com seu terno escuro parecia um jovem trabalhador de um dos inúmeros escritórios daquela metrópole. Tinha a pele muito pálida e era incrivelmente musculoso para uma criatura sobrenatural. Apresentou-se como Wonho e carinhosamente segurou em suas mãos para teletransportá-lo suavemente até uma grande sala arredondada cujas paredes estavam cobertas por inúmeras prateleiras ocupadas por arquivos amarelados, e que apresentava como único móvel uma mesinha de madeira lustrosa e arredondada posicionada bem no centro do cômodo. Sobre ela havia um aparelho de chá completo.

Changkyun e Wonho sentaram-se sobre os calcanhares um de frente para o outro da maneira tradicional. Era engraçado para o idoso não sentir nenhum incômodo em suas articulações, e pensou que era muito bom não estar mais dentro de seu velho corpo, por isso sorriu e foi correspondido pelo Ceifador à sua frente que parecia entendê-lo.

– Kim Changkyun, – o Ceifador começou, e sua voz tinha um gosto agridoce que tranquilizava ainda mais aquele espírito já tão sereno – o senhor foi uma boa pessoa em vida e não há muitos pecados em sua ficha, mas ainda assim você passará por um julgamento, o senhor entende isso?

– Sim, meu filho, estou ciente – o ceifador sorriu, era muito mais velho que Changkyun, mas mesmo assim ficara feliz por ser tratado carinhosamente, por algum motivo sentia que aquela alma era uma velha conhecida, talvez já tivessem se encontrado, ou quem sabe ainda se encontrariam quando sua pena acabasse.

– Bom, muito bom vovô – decidiu que deveria retribuir o tratamento. – Para ajudá-lo, o convido a tomar um chá comigo, o senhor aceita?

– Não recusaria um pedido tão educado, filho, mas por que o convite?

– O senhor deve deixar esta vida para trás, reconhecer seus erros, pedir perdão sinceramente e principalmente perdoar a si mesmo, se não o senhor ficará preso a este mundo como um espírito errante e aos poucos o senhor será corrompido pela energia suja que há no mundo e então o senhor se perderá e Hades irá reclamá-lo para o submundo que governa – o jovem suspirou e continuou – Vovô, o senhor não merece este castigo, hum?

Changkyun assente com a cabeça e dá uma olhada em volta, reparou que a iluminação do lugar era rosada como se os raios de sol fossem filtrados em um vitral.

– Por que a luz é cor de rosa?

– É a sua cor vovô, a cor que sua aura emana agora.

Os dois sorriem um para outro e Wonho começa a preparar o chá com movimentos firmes e delicados. Logo o cheiro adocicado tomou conta do lugar e a fumaça da água quente deixou aquele momento ainda mais etéreo. Quando o jovem serviu ao espírito foi surpreendido por suas mãos em seus braços chamando sua atenção.

– O senhor precisa dizer algo, vovô? – Perguntou gentilmente.

– Por favor... – Changkyun olha no fundo dos olhos do ceifador e via muita bondade ali dentro, então manteve a esperança de conseguir o que queria, estava aguardando o momento oportuno mas ele nunca chegava – Meu filho, você tem minha ficha e deve saber tudo sobre mim, eu sei que há uma parte da minha vida que me foi tomada, apagaram de minhas memórias, e eu sinto que foi uma coisa que magoou alguém, como posso perdoar e esquecer se eu nem sei do que deveria me arrepender?

Wonho baixou os olhos e olhou para longe, aquilo era difícil, ele estava muito abaixo na hierarquia da morte para se envolver naquele tipo de assunto.

– Eu sinto muito vovô, mas eu não posso fazer isso, esse assunto mexe com Melinoe, a deusa dos fantasmas não é nada fácil de se lidar... eu... eu sinto muito.

Os olhos de Changkyun se encheram de lágrimas, era sua última chance de descobrir algo. O Ceifador levantou e deu a volta na mesa para sentar a seu lado e passar um braço em sua volta, queria tanto poder ajudá-lo, agora chorando baixinho ele tinha a aparência de um garoto de 20 anos, os cabelos escuros, a pele macia.

E então a luz mudou, de rosa para roxo, de roxo para azul escuro, o cheiro doce do chá se dissipou e uma neblina densa e carregada inundou a sala, havia uma energia obscura e Wonho se preocupou se vinha da alma que segurava nos braços, mas Changkyun já estava se conformando e se mantinha quase estável. Foi quando o viu, era um filho de Melinoe. Como todos eles, era pálido, alto, esguio, elegante e principalmente frio. Seus olhos escuros se fixaram no espírito em seus braços e ele pareceu vacilar.

Changkyun levantou os olhos, não estava com medo, aquela sensação de abismo que o recém-chegado trazia era muito familiar. Se ainda tivesse um coração ele agora estaria aos saltos, desprendeu-se dos braços fortes do Ceifador e se aproximou do estranho.

Wonho nada podia fazer, rebaixado a um mero expectador assustou-se quando o filho de Melinoe se aproximou de Changkyun e o abraçou.

– Hyungwon... – Changkyun deixou escapar em um soluço e surpreendendo ainda mais ao Ceifador, o filho de Melinoe também chorou.

– Chang... kyun... – o filho de Melinoe suspirou e então o beijou, um beijo de saudades, cheio de mágoas e arrependimentos. Um beijo de adeus em meio a palavras murmuradas que nenhum dos dois podia ouvir.


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Sumário:

Ceifador: criatura sobrenatural ligada à Morte. É uma espécie de funcionário da morte, responsável por abordar as almas recém desencarnadas e guiá-las até o outro mundo.

Fantasma: um espírito que se recusou a seguir seu Ceifador e ir para o outro mundo, ficam vagando na terra até ser reclamado por Hades.

Filhos de Melinoe: nesta história os filhos de Melinoe tem o papel de "supervisores" dos ceifadores, um papel mais burocrático dentro da hierarquia da morte.

Hades: o deus do submundo, aqui nesta história seria o deus do inferno.

Melinoe: deusa grega dos fantasmas, das oferendas e cerimônias fúnebres.

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