Velhos Amigos
—Ela é uma penetra.
A voz era masculina, jovem e desconhecida. Onde estou? pensou Sonea. Em primeiro lugar, deitada sobre algo macio. Uma cama? Não me lembro de ter deitado em uma cama...
— Sem chance.
Essa era a voz de Harrin. Ela percebeu que ele a estava defendendo, então o significado do que o estranho dissera foi fazendo sentido e ela sentiu um alívio atrasado. Um "penetra", na gíria das favelas, era um espião. Se Harrin tivesse concordado, ela estaria encrencada... Mas uma espiã a mando de quem?
— O que mais ela pode ser? — retorquiu a primeira voz. — Ela faz magia. Os magos têm de ser treinados durante anos e anos. Quem é que faz essas coisas por aqui?
Magia? As memórias regressaram-lhe num turbilhão: a praça, os magos...
— Magia ou não, eu a conheço há tanto tempo quanto conheço Cery — disse Harrin ao garoto.
— Ela sempre foi firmeza.
Sonea mal o ouvia. Na sua mente, ela viu-se atirando a pedra, viu-a brilhar através da barreira e golpear o mago. Eu fiz aquilo, pensou ela. Mas não é possível...— Mas você mesmo disse que ela esteve fora por alguns anos. Vai saber com quem ela tem andado.
Então ela se lembrou de como evocara algo de dentro dela... algo que não devia possuir...
— Ela tem andado com a família dela, Burril — replicou Harrin. — Acredito nela, Cery acredita nela, e isso basta.
... e o Clã sabe que eu fiz aquilo! O velho mago a vira, apontara para ela de modo que os outros magos a vissem. Ela estremeceu quando a lembrança de um cadáver carbonizado surgiu em sua mente.
— Eu o avisei. — Burril não estava convencido, mas parecia derrotado. — Se ela lhe passar a perna, não se esqueça de quem o avi...
— Acho que ela está acordando — murmurou outra voz familiar. Cery. Ele estava em local próximo.
Harrin suspirou.
— Fora, Burril.
Sonea ouviu passos afastando-se, depois uma porta se fechando.
— Agora pode parar de fingir que tá dormindo, Sonea — murmurou Cery.
Uma mão tocou seu rosto e ela abriu os olhos, pestanejando. Cery inclinava-se sobre ela,
sorrindo.
Sonea endireitou-se usando os cotovelos. Estava deitada em uma cama velha, num quarto
desconhecido. Quando deslizou as pernas ao chão, Cery lançou-lhe um olhar avaliativo.
— Você parece melhor — disse ele.
— Sinto-me bem — concordou ela. — O que aconteceu? Ela ergueu os olhos quando Harrin
se moveu para colocar-se diante dela. — Onde estou? Que horas são? Cery sorriu.
— Ela está bem.
— Você não se lembra? — Harrin agachou-se para olhá-la nos olhos. Sonea sacudiu a cabeça.
— Lembro de estar andando pelas favelas, mas... — Ela espalmou as mãos. — Não de como cheguei aqui.
— Harrin a trouxe até aqui — disse uma voz feminina. — Ele disse que você simplesmente adormeceu enquanto andava.
Sonea virou-se e viu uma jovem sentada em uma cadeira atrás dela. O rosto da garota era familiar.
— Donia?
A garota sorriu.
— Isso mesmo. — Ela bateu um pé no chão. — Você está na boleria de meu pai. Ele nos
deixou acomodá-la aqui. Você dormiu direto a noite toda.
Sonea olhou novamente em volta da sala, depois sorriu quando se lembrou de como Harrin
e seus amigos costumavam subornar Donia para que ela roubasse canecas de bol para eles. A bebida fermentada era forte e os deixava eufóricos.
A boleria de Gellin ficava perto da Muralha Exterior, entre as melhores casas construídas na parte das favelas chamada Lado Norte. Os habitantes dessa área chamavam as favelas de Círculo Exterior, em oposição à atitude dos que residiam no distrito interno, que não consideravam as favelas parte da cidade.Sonea supôs estar em um dos quartos que Gellin reservava aos hóspedes. Era pequeno; o espaço era ocupado pela cama, pela cadeira desgastada em que Donia se sentava e por uma mesinha. Cortinas de papéis velhos e desbotados cobriam as janelas. Devido à luz desmaiada que brilhava através delas, Sonea deduziu que já fosse de manhã cedinho.
Harrin voltou-se a Donia e fez um aceno. Quando a garota se levantou da cadeira, Harrin encaixou a mão em volta da cintura dela e a puxou para perto. Ela sorriu para ele de modo afetuoso.
— Acha que consegue arranjar algo para a gente comer? — perguntou ele.
— Vou ver o que posso fazer. — Ela caminhou até a porta e saiu do quarto.
Sonea lançou a Cery um olhar interrogativo e recebeu um sorriso presunçoso como
resposta.
Deixando-se cair na cadeira, Harrin ergueu os olhos para Sonea e franziu as sobrancelhas. — Tem certeza que tá melhor? Ontem à noite você tava meio passada.
Ela encolheu os ombros.
— Sinto-me bem, de verdade. Como se tivesse dormido como uma pedra.
— E dormiu. Quase um dia inteiro. — Ele encolheu os ombros, depois lançou a ela outro
olhar avaliativo. — O que aconteceu, Sonea? Foi você quem jogou aquela pedra, não foi? Sonea engoliu em seco, a garganta de repente desidratada. Perguntou-se por um momento se
ele acreditaria nela se negasse.
Cery colocou a mão no ombro dela e o apertou.
— Não se preocupe, Sonea. Não diremos nada a ninguém se é isso que você quer.
Ela fez que sim com a cabeça.
— Fui eu, mas... eu não sei o que aconteceu.
— Você usou magia? — perguntou Cery, com ansiedade.
Sonea desviou o olhar.
— Eu não sei. Só queria que a pedra atravessasse... e ela atravessou.
— Você quebrou a parede dos magos — disse Harrin. — Isso requer magia, não? Pedras
geralmente não a atravessam.
— E houve aquele clarão — acrescentou Cery.
Harrin concordou com a cabeça.
— E os magos obviamente ficaram possessos.
Cery inclinou-se para a frente.
— Acha que conseguiria fazer aquilo de novo?
Sonea olhou fixamente para ele.
— De novo?
— Não a mesma coisa, claro. Não queremos que fique jogando pedras nos magos... eles
parecem não gostar muito. Outra coisa qualquer. Se funcionar, você vai saber que consegue usar magia.
Ela estremeceu.
— Acho que não quero saber.
Cery sorriu.
— Por que não tenta? Pense no que poderia fazer! Seria fantástico!
— Pra começar, ninguém jamais seria problema pra você — disse Harrin. Ela sacudiu a cabeça.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Clã dos Magos- A Trilogia do Mago negro Vol. 1
Fantasy[NÃO AUTORAL/ APENAS REPOST] " Cuidado com o que deseja, você pode se tornar um deles." Todos os anos, os magos de Imardin reúnem-se para purificar as ruas da cidade dos pedintes, criminosos e vagabundos. Mestres das disciplinas de magia, sabem qu...