Mais Outro Copo de Vinho

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  Após certas decepções naquela noite melancólica, Klaus viu-se obrigado a afogar suas mágoas de alguma maneira. Passou por seus pensares várias possibilidades, como ir à sua choupana descansar ou encravar um punhal no próprio estômago. Refletiu muito enquanto caminhava naquela estrada escura, onde nada se ouvia além dos insetos da madrugada.
  Um ponto luminoso surge no caminho, não parecia estar tão longe, e o jovem decide chegar mais perto. À medida que aproximava-se, a luz se expandia, assim como o estabelecimento e o barulho lá dentro. Pelo jeito que era agitado o ambiente, tamanha devia ser a farra. Não era de se espantar que tratava-se de uma taverna, o que para Klaus seria uma ótima oportunidade para esvaziar uma garrafa e esquecer o que passara até então.
  Estava muito lotada. Senhores gargalhavam, os copos tilintavam em todos os cantos e as senhoritas corpulentas faziam os desejos de muitos ébrios. O rapaz teve certa dificuldade de andar por ali, já que ele e a maleta com seu violino esbarravam com alguém a todo momento. Enfim alcançara o balcão, onde poucos emburrados achavam seguro se assentar. Ali estava o desejado lugar de Klaus.
  Sentou-se ao lado de um inválido de nome Beneditti, que já mandara embora meia garrafa, e em frente ao taverneiro. Colocou o violino sobre o banco vazio à sua esquerda e formulou seu pedido:
  - Dê-me um copo de vinho, dos fortes, por favor.
  O homem pegou uma garrafa, sacou-lhe a rolha, encheu o copo com aquela bebida em vermelho vivo e estendeu ao jovem:
  - Este é um dos mais efetivos da casa. Sugiro que tenha cautela ao ingeri-lo, seja lá para o que quiser ganhar com isso.
  - O coitado está com feição amarga. Na certa quer não mais lembrar um passado pouquíssimo remoto. - resmungou o beberrão ao lado.
  - Como sabes? - indagou Klaus, dando um pequeno gole.
  - Vê-se de longe isso, estampado no teu rosto! - comentou o copeiro.
  - Não é nada de mais, senhores, só quero desfrutar deste licor. - disse o rapaz.
  - Por que não vai se engraçar com tais donzelas? Lá em cima há uma dançarina bem boa, te faria esquecer até da própria vida! O que me diz?
  - Não estou para devassidão nesta hora inoportuna.
  Klaus mal terminara o copo e já pediu outra dose. Assim foi feito. Beneditti, que também enchera seu copo recentemente, olhou para a atitude do moço e, curioso, perguntou-o:
  - O que te aborrece, meu caro? Não há alma viva que entre aqui sem uma razão que seja, ainda mais nesse lamentável estado de humor.
  - Prefiro guardar esse amargor para mim, seria tamanho desperdício de vosso tempo.
  - Ora! Conte-nos logo esta prosa que te deprime. Quem sabe não te aconselhamos. Não temas! - disse o funcionário.
  - Está bem! Está bem! Hei de satisfazer vossa maldita insistência. Primeiramente, encha-me o copo novamente.
  O taverneiro deu-lhe outra rodada de vinho e, junto ao outro homem, esperou Klaus começar a história.
  - Tudo começou quando passei a frequentar aquela biblioteca grande perto da catedral. Lá eu me encontrava com alguns poetas, amigos confiáveis, e lia um pouco da ilustríssima obra de Virgílio. Certa vez, quando lancei-me a subir outra vez aquelas escadarias, percebi de relance um vestido rubro passar pela porta, o que foi suficiente para despertar uma curiosidade inabalável. Entrei. Fui seguindo-a discretamente. Era uma bela senhorita, de um rosto fino e delicado, seus escuros cabelos encaracolados se soltavam nos ombros, caíam leves como as quedas que se formam no Danúbio.
  - Cabelos negros e vestes encarnadas, em nada me espantaria se fosse uma espanhola! - disse o ébrio.
  - Se parecia um pouco com uma, sim. Prosseguindo, era um anjo em meio a um mundo de infelizes. Logo virou à direita, no terceiro corredor. Fiquei observando-a pelas frestas das prateleiras, até ela parar, pegar um livro na parte de baixo e folheá-lo. Resolvi chegar mais perto, fazendo a mesma curva e olhando para as obras, como maneira de disfarçar minha espreita. Fui tomado por um misto de admiração e alegria quando vi o que ela estava a ler: era Bocage! Oh! Enfim não estaria mais tão solitário nessas terras quando se tratava de gostar da bela poesia árcade de Portugal! Obviamente me percebera naquele mesmo corredor, mas optou por manter sua concentração. Teria que existir alguma forma de nos aproximarmos, um estopim para longas reflexões e pensamentos bucólicos, ou mesmo, o primeiro queimar da chama de um amor ardente. Dê-me outro copo, meu caro.
  - Te cuidas para não cair no meio da trama! Todos queremos saber da brilhante ideia que tiveste para conhecer a moça, e nenhuma embriaguez súbita há de entrar no caminho. - falou o taverneiro, enchendo o copo pela quarta vez.
  - De repente, passou pela minha mente um plano que havia de mudar eternamente minha história. Pus-me a pegar um volume de Fausto lá no alto e, propositalmente, acabei por derrubar outros no chão. O barulho ecoou por quase toda a biblioteca, porém, nada importava mais que o fato de ela vir me ajudar a arrumar aquela balbúrdia. Assim que nossos olhares se cruzaram, meu coração palpitou com mais força, quase não tive reação alguma. Enfim, por mais árduo que fosse dizer qualquer coisa, agradeci pelo favor e comentei que era um grande admirador de Bocage. Ela sorriu e disse que era um de seus poetas favoritos. Um mar de ternura inundou aquele instante: seus olhos eram duas joias raríssimas, sua voz uma brisa mediterrânea leve que acaricia nossos rostos, e seus magníficos gostos literários eram de ser invejados por qualquer um. Na prosa que tivemos, descobri que também era fascinada por Horácio e Virgílio, mais um dos motivos para eu ficar mais uma vez enamorado. Assim começaram muitas leituras e conversas prazerosas pelo resto dos dias, ao lado de minha amada Theodora.
  - Perdoe-me pela intromissão, ó rapaz, mas tal memória está muito aprazível para quem chegou aqui completamente abatido! - resmungou Beneditti.
  - Cala-te! Tampouco ouviste do que tenho a contar e já tiras conclusões vis! Escutai o restante, criatura infame!
  O jovem pediu o quinto copo de vinho, já o outro acabara com a garrafa, mas não pediu mais por estar vidrado nas desventuras amorosas do moço. Klaus parecia ter um organismo forte para bebida, porém já estava meio tonto, com algumas dores de cabeça e falando mais lentamente, fatores que não o impediram de continuar seu relato:
  - Com certeza era uma grande amante, não só da literatura pastoril, mas também dos ideais bucólicos do Arcadismo. Com uma intimidade cada vez maior, passamos a falar do cotidiano, do mundo e de nossas próprias vidas. Antes só nos encontrávamos na biblioteca, pois agora frequentávamos o mercado, o teatro, a praça, a catedral, minha casa e, principalmente, a casa dela. Até hoje ainda vive com os pais, que me receberam com respeito e uma invejável mordomia. De longe se vê que são pessoas gentis. De tão próximos que estávamos, era ela quem me fazia sorrir, me aconselhava e me confortava nas horas de mais densa penumbra. Queria ver aqueles olhos joviais e tocar suas tenras mãos todos os dias, e em todas as noites a dama angelical cantava em meus sonhos, em seguida me acariciando e tocando seus lábios em meus lábios. Estar com Theodora era como acordar numa manhã ensolarada de abril, em um campo revestido por tulipas e ao melodioso cantar dos rouxinóis. Todavia, minha aproximação com a moça gerou um afastamento dos meus colegas poetas, já que eu não mais discutia literatura e filosofia com os mesmos, nem por correspondência. Nem precisava dizer que se enciumaram e ficaram enfurecidos com toda a situação. Cego de paixão, deixei que se afastassem, pois só tinha olhos, palavras e alma para minha divindade imaculada de cabelos negros como o breu noturno. Outro copo... por favor.
  - Ainda não jogaste fora essas memórias lancinantes? Já está na sexta dose de um dos maiores terrores da adega esse pobre coitado! Terminai esta trama, ó pinguço desiludido! - exclamou o copeiro.
  - Logo hei de perder estas assombrosas lembranças. Eis a parte em que enraizam-se tais desgraças. À medida que fui ficando mais afeiçoado a Theodora, passei a satisfazer seus caprichos. Se quisesse um favo de mel, eu era picado por um enxame no alto do carvalho, só para pegá-lo e extinguir a ânsia dela. Se quisesse ouvir uma música, a levava a uma ópera ou eu mesmo matava uma noite para ensaio, afim de tocar minha própria canção no dia seguinte. E ficava Theodora alegre, sadia e deslumbrante, deixando-me também alegre, embora quase caindo em um penhasco de debilidade e dor eterna. Percebendo a consideração imensa que eu a tinha, a moça passou a ser uma carrasca em seus pedidos. Havia eu de acordar antes da alvorada, estar muito cedo à sua porta para que me dissesse o que buscar no mercado, e ligeiro eu ia, retornando o quanto antes. Ordem caía sobre ordem. Muitas vezes mandava-me limpar seu quarto, lustrar seus sapatos, fazer várias costuras em vários de seus vestidos, enquanto ela saía sem aviso de onde estaria na ausência. Ai, foram dias tão sombrios! Sentia-me um cativo, meus ossos doíam, a insônia era incessante, e aquela fineza e esplendor de Theodora eram tão invisíveis às minhas retinas entristecidas.
  - Ai, tirana! O homem que possui em sua estrada o fardo de uma mulher ingrata, há de ser condenado aos mais dantescos pesadelos pelo resto de seu viver miserável! - exclamou o velho Beneditti, com a visão já meio turva.
  - Ainda não escutaste o pior! Se achas Theodora um mar de desapreço, verás agora a grande maldição que lançou-me aquela donzela que um dia amei com toda a alma.
  O taverneiro viu o copo do jovem vazio novamente, tratando de preenchê-lo rapidamente. Klaus agradeceu, deu um gole e retomou a trama que cada vez mais lhe afligia:
  - Certo dia, ia eu cumprir com a maçante rotina, no entanto, encontro com Theodora no caminho que vai até sua casa. Estranhamente, cumprimenta-me do jeito doce e educado de quando a conheci, com direito a abraço e beijo no rosto, e logo me disse que não precisava mais que eu fizesse aqueles serviços árduos. Senti milhares de grilhões despencarem das minhas costas. Era como se minhas asas de pássaro ferido tivessem se recuperado, e a máscara mortal e cruel que cobria a alma de Theodora se desvanecesse. Acompanhou-me até em casa, conversando nossos velhos assuntos literários, depois seguiu pela estrada sem dizer onde ia, despedindo-se de longe. Oh! Senti naquela manhã o prazer e o alívio voando lado a lado! A donzela passou a visitar-me uma ou duas vezes à semana, trazendo-me alguns quitutes, alguns livros de poesia e aquelas conversas melódicas. Era minha musa que enfim retornara! Novamente enamorado, talvez mais que antes, resolvi compor a ela uma serenata. Acordei numa manhã de sol, fui ao gramado com algumas partituras por fazer e pus-me a tocar umas notas no meu violino. Mantia uma, reparava outra, e assim se seguiu até a canção ficar perfeita. Chegamos ao dia de hoje: levantei cedo para treinar aquela majestosa declaração de amor. À tarde escolhi minha melhor roupa e, quando o Sol se pôs, dirigi-me à casa de minha amada. Chegando lá, sua mãe disse que ela saíra há pouco, mas não dissera para onde fora. Saí a procurá-la. A biblioteca estava fechada, não estava na catedral, nem no mercado, nem na praça. Nisso, resolvi procurar nas redondezas do bosque, já quase chegando a meia-noite. Fiquei por lá procurando, até vê-la, enfim, meia hora depois, atravessando a ponte do lago. Caminhei mais rápido afim de alcançá-la, abrindo a maleta que guardava o violino, mas parei subitamente. - parou de falar, posicionando o copo vazio outra vez na mesa.
  O funcionário estendeu a garrafa de vinho, mas o jovem repreendeu-lhe antes dela se aproximar do copo:
  - Não! Guardai este néctar dos perturbados por um momento! Naquele instante, meus olhos mal podiam se conformar com aquela cena constrangedora e deprimente a níveis absurdos: era um moço bem trajado, bonito, de voz potente e de postura elegante. Antes fosse apenas isso, mas o indecente usou todo o seu jeito cortês com Theodora, que logo fora cativada e começou a se engraçar com ele. Provavelmente o conhecia, pois falava bem alto o nome "Calvin". Fiquei atrás de um arbusto observando aquele encontro indesejado, sob a noturna luz da Lua. Se falaram um pouco, em palavras inaudíveis de onde eu me encontrava. Enfim, veio o fato que mais auxiliaria o meu sofrer (por pouco não tive uma taquicardia ou um mero desmaio): os dois se entrelaçaram e se entregaram de corpo e alma a um longo beijo. Ai, Theodora! Por que fizeste tamanha desfeita a quem te deu o mais sincero amor de todos os tempos? Sem mais reações, fui embora. Caí em prantos, de bruços naquele penhasco da dor sem fim e me inundei nas menos respeitáveis desesperanças. Todo meu ânimo, meu encanto e minha motivação foram levadas por uma tempestade, com suas ventanias impiedosas e seus trovões intimidadores. Já não sei nem mais de onde extrair vigor e deleite de uma vida banhada à desgraça! E eis-me aqui, na vaga dos desrumados e dos condenados!
  Os dois outros homens se entreolharam, fizeram uma breve pausa e principiaram uma sequência de gargalhadas, passando a enfurecer o pobre Klaus.
  - Meu caro, como te entregaste a uma sandice tão grande como esta? Um homem experiente sabe que confiar seu amor a qualquer moça é o estopim do desprezo e da decepção! É a lei natural que todos hão de ter ciência! - falou o bêbado, ainda a rir.
  - Oh! Ilustríssimo conselho! Sabes bem aconselhar um colega em seu tempo de melancolia profunda, prestes a respirar à força o sopro sombrio da Morte! Que queimes tu o quão cedo nas profundezas ardentes de Lúcifer, ó, velho infame e desgraçado! - bradou o rapaz, dominado por um gigantesco ataque de fúria.
  - Vejas bem: até que o beberrão à sua direita não está de todo equivocado. Hás tu de carregar teu fardo de desgraças e arrependimento nas próprias costas, sem haver uma alma vivente para te servir de apoio. Se queres conselhos, acolhimento ou algo do tipo, junta-te à mesa do Bertram, do Solfieri e dos demais, estão a contar seus sofreres amorosos também. Porventura, compartilhar seja a rota mais afortunada. - disse o copeiro.
  - Vejo que fui um mentecapto ao escolher um poço de desajustados como refúgio! Ai, desventura! Hei de lastimar então sob meu teto, jamais com uma corja de ébrios! Findai vosso deleite e alegria antes que possam os olhos captar, antes que o Sol desponte no horizonte, jogando-vos na perdição que é a noite, a escuridão e a Morte! - exclamou o violinista.
  O taverneiro e Beneditti calaram-se, apenas ouvindo as lamúrias e os escárnios de Klaus. Este, por sua vez, jogou o pagamento sobre o balcão, pegou a maleta e saiu da taverna, cambaleando e se esbarrando em todos que estavam no caminho. Mais valia ficar na solidão de seu lar, em prantos por seu espinhoso passado, do que num covil de zombaria e maus conselhos, que tampouco lhe apagara aquelas memórias horríveis.

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