Meus músculos doem tanto que parecem que vão explodir. Articulações gritam de desespero e estalam como se fossem gravetos secos sendo pisoteados, mas, apesar da dor, não me resta escolha: eu não posso parar. Eles não sentem dor. Não se cansam. Não sentem pena, remorso ou medo. E eles não vão parar por nada.
Um estiramento, uma cãibra, uma leve pontada e seria o fim. Só o que me resta é torcer para que meus músculos aguentem, para que a enorme pressão em meus joelhos não os faça ceder. Preciso confiar na sorte e na força de vontade e continuar em frente. Sempre em movimento. Estou quase lá.
Apesar do esforço sem igual, minha pele está gelada. Sinto isso. Ela está gelada, mas queima ao mesmo tempo; uma sensação estranha, quase alienígena. Não há suor em meu rosto, apenas a dor, a queimação; mas não posso parar de me mover.
Eu me lembro de quando podíamos andar pelas ruas, sem termos que correr para viver. Não faz tanto tempo, mas, mesmo assim, parece uma eternidade. Eu guardo memórias bem conservadas, imagens vívidas e claras de como era o mundo antes deles. Antes da chegada dessas coisas. São essas imagens que me mantêm em movimento, mesmo quando a dor parece maior que a esperança. Tenho na memória como era sentar-se em um barzinho numa sexta-feira à noite para tomar cervejas, comer amendoins e jogar conversa fora. Lembro-me de voltar a pé para casa, caminhando por doze quadras escuras como se fosse o rei do mundo, assobiando com o único propósito de mostrar para o planeta inteiro que eu estava ali, que eu existia, que era relevante. Hoje, ninguém mais sai à noite. A noite é deles. Ela se tornou soturna, tornou-se um estranho que cospe em nosso frágil rosto humano e ri de nossa impotência. Ninguém sai à noite, pois ela não nos pertence mais. A noite é dos predadores, reduto dos mais fortes, e nós... Nós somos as presas.
Havíamos chegado ao auge da evolução, disso não tenho dúvida. A tecnologia era tão vertiginosa, que ninguém mais podia acompanhar seus progressos com facilidade, nem mesmo os especialistas da área. Os aparelhos estavam cada vez menores, assim como as distâncias haviam diminuído no mundo com o advento dos meios de comunicação em rede. Mas onde está tudo isso agora? De que servem essas coisas em uma realidade em que não há mais pão para comer?
Eu me recordo da cultura do fitness, com academias explodindo em todo o país, e de corpos sarados e torneados substituindo outros esquálidos e gordurosos. As pessoas cultuando a imagem que o espelho mostrava, vivendo em função da forma como os outros as viam, ao invés da forma como se sentiam bem. Essas mesmas pessoas estão irreconhecíveis agora, descarnadas, encarnadas na brutal e acachapante violência primal, tão intensa, que o mundo jamais vira outra similar antes.
Lembro-me também da indústria das celebridades, que eram escolhidas por nós para figurar em salas de cinema, no palco e na televisão e se elevar acima do patamar em que estava o resto da raça humana. Celebridades que elegemos somente para vê-las reclamar de ser capas de revistas e ser fotografadas em público, e para dar nome ao jogo e significado à nossa vida vazia. Nós as elegemos por conta de seu carisma indiscutível, e elas passaram a ditar tudo o que tínhamos que fazer, como nos vestir, como cortar os cabelos, onde comprar, o que ler... Onde estarão essas celebridades agora? Na mesma situação em que todos nós estamos: correndo, se escondendo, chorando? Ou, há muito, a maior parte se tornou palácios ambulantes para vermes e insetos reinarem?
Minhas pernas vão explodir, mas não posso pensar nisso. Não posso pensar que o fôlego está acabando e que talvez minha preocupação mais imediata seja o coração, e não os músculos. A sensação é de vertigem, os pulmões buscam ar, mas ele não vem. Eu respiro, sei que respiro, mas o ar parece não entrar. E eles... Eles não se cansam.
O mundo antes deles era um mundo de odores. Minhas memórias mais doces incluem o cheiro de um carro novo, com seus bancos de couro recém-saídos da fábrica. O leve odor de lavanda de uma moça com quem saí certa vez. Ela tinha um sorriso de carícias, mas mãos endiabradas, e seu cheiro estava entre os mais poéticos que já sentira. Hoje, só o que restou é este constante cheiro pútrido que impregnou tudo, até a nós mesmos. Esse cheiro de carne podre que grudou em nossas roupas, nos cabelos e até na própria pele. É o cheiro da morte. O mundo todo se tornou um parque de diversões para a morte brincar, passear nos brinquedos e observar a loucura que encena no palco do teatro da vida.
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Apocalipse Zumbi
HororO caos reina no mundo. A civilização entrou em colapso. As comunicações, a energia elétrica e a vida em sociedade, como a conhecemos, praticamente se extinguiram. Nem toda a nossa tecnologia foi capaz de nos proteger e evitar que dois terços da huma...