Capítulo 2 - FILHOS DA LUA

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Agora eu corro com meus lobos
Danço ao redor do fogo
Bem nos olhos vejo os monstros
Que insistem em me encarar

Jão

Deitado na cama, Nathanael lutava contra seus monstros. Era uma luta dolorida e particular. Não conseguia tirar da cabeça tudo o que passara durante o raiar da Lua, desde sua luta com aquele bicho estranho a chegada em sua casa e dar de cara com a avó ferida.

Queria muito saber como Samantha estava depois de tudo o que passaram, mas também gostaria de entender como a avó se ferira com o canivete. Pior de tudo, com o canivete dele. Parecia meio óbvio o que acontecera, porém era melhor negar a acreditar na possibilidade de que aquele monstro fosse sua avó, ou sua avó fosse aquele monstro.

A ordem não importava, mas ele precisava entender tudo o que acontecera durante toda a sua vida. Havia mais alguma coisa que ele precisava descobrir?

Decidiu então, depois de muita luta e receio, conversar com a avó. Levantou-se da cama e dirigiu-se até a cozinha e para sua surpresa o Velho Alfredo estava sentado à mesa com Dona Tica.

— Onde você conseguiu esse canivete? — indagou Dona Tica.

A velha estava com a perna coberta por um curativo que fizera mais cedo com o neto. Usaram o líquido, que tinha nas garrafas que o Velho Alfredo mandara, como poção curativa. O que parecia ter funcionado perfeitamente.

— Ganhei de Samantha...Samantha Prata. — gaguejou Nathanael.

Os velhos se entreolharam e Nathanael interpretou aqueles gestos como se tivesse feito algo imoral.

— Quantas vezes eu já não lhe avisei que não queria você misturado com aquela gente? — disse Dona Tica rangendo os dentes — Você acha que minhas brigas e maldições proferidas àquela família eram caprichos de uma velha louca?

— Alguém poderia me explicar o que está acontecendo? — implorou Nathanael deixando uma lágrima escorrer pelo rosto.

— Sente-se, meu querido! Temos muito a dizer... — pediu calmamente o Velho Alfredo.

Agora que tudo ficara mais confuso para Nathanael. O que eles tinham de tão misterioso para falar e o que o Velho Alfredo tinha a ver com um assunto tão particular?

— Ainda não é o momento, Alfredo! — sussurrou Dona Tica.

— Como não é o momento, Francesca? Ele...o garoto precisa saber...ele feriu vossa rainha. — argumentou Alfredo que logo se assustara com o salto que o garoto dera.

— Feri??? Rainha? O que diabos está acontecendo aqui? Eu feri um...lobisomem! Eu feri... — gritou Nathanael entre soluços.

— Eu sou uma Peeira. — disse-lhe Dona Tica, firmemente.

Nathanael a olhou incrédulo e não sabia o que responder. Suas pernas tremiam tanto que o mesmo achava que não aguentaria por muito tempo permanecer em pé. Resolvera sentar novamente. O velho Alfredo se levantara e dirigiu-se ao fogão dizendo:

— Vou fazer um chá de...

— Não! — interrompeu Dona Tica — Sirva-o com Lua de Mel.

Lua de Mel era um licor que a velha tinha guardado em casa e que sempre bebia em dias comemorativos. O velho Alfredo pareceu gostar mais dessa ideia, pois abriu logo um grande sorriso e pôs-se a mesa três copos, servindo-os rapidamente.

— Eu sou uma Peeira. Isso quer dizer que eu me transformo em um lobo. — Afirmou a velha após tomar um gole do licor.

— Não em qualquer lobo! — bajulou o Velho Alfredo.

Enquanto isso Nathanael escutava silenciosamente, mas tinha a sensação de que eles também estariam escutando os embrulhos que seu estômago dava.

Dona Tica fora até seu quarto e voltara trazendo, em mãos, um livro grosso intitulado Filhos da Lua. Debruçou-o em cima da mesa, abrindo-o na página 71, que trazia como título VERSILÉPIOS.

— Para que você entenda melhor — disse ela —, você precisa conhecer essa linhagem. Porém, me escute calmamente e deixe as perguntas para depois.

Nathanael assentiu com a cabeça.

— Seu pai e eu somos Filhos da Lua, popularmente conhecidos por lobisomens. Pertencemos a linhagem dos Versilépios...

— A linhagem mais forte, diga-se de passagem! —completou o Velho Alfredo que fora logo interrompido.

— Nós, Filhos da Lua, possuímos um fadário, dependendo, claro, da nossa linhagem... — continuou Dona Tica.

— Eu por exemplo, sou um Filho da Lua Transmorfo, tenho como fado correr pelo mundo, livre...e ao mesmo tempo...preso. — Disse Alfredo.

Nathanael pode sentir um pouco de dor nas palavras proferidas pelo velho.

— Vamos ao que interessa! — ralhou Dona Tica e continuou: — Nós, Versilépios, temos como fadário manter a nossa linhagem, que é muito rara. Pois possuímos vários dons, o que nos torna a linhagem mais forte e pura.

— E onde eu entro nessa história toda? — perguntou Nathanael, ainda incrédulo diante de tudo que estava ouvindo.

— Meu filho, Salatiel Melchior casou-se com uma Peeira chamada Cecília Melim, para podermos darmos continuação a nossa linhagem. E assim você nasceu, nosso sangue puro, Nathanael Melchior...

Nathanael sentia que seu mundo estava desabando aos poucos. Toda a verdade que acreditava, estava sendo destruída da pior forma possível.

Não bastava a maneira rude com que fora criado pela avó, agora tinha que lidar com o lado mais sombrio da sua vida.

Um filme passava-lhe a cabeça e de repente começara a rever situações que colaboravam para essa nova realidade.

Lembrou-se das fofocas que corriam pela cidade sobre a avó. Recordou-se de sua infância incomum, de como sua avó não o deixava ser amigo de ninguém.

Sempre fora sozinho. Sempre fora o excluído na escola.

Nunca participara das festas da comunidade, como as outras crianças faziam. Tudo estava se encaixando. Por isso, nunca vivenciara uma igreja como as pessoas normais. Não que isso lhe tivesse feito falta, mas começava a fazer sentido, toda essa vida solitária e oculta aos olhos da sociedade.

Se ele tivesse tido escolha, teria preferido continuar vivendo na sua própria bolha a ter que aceitar essa macabra realidade.

Agora parecia ser tarde demais.

— Então, segundo vocês, eu serei aquele monstro? —concluiu Nathanael com os olhos esbugalhados.

— Olha como você fala, rapazinho! — advertiu-o Alfredo. — As coisas não são tão simples como parecem.

— Simples? Eu só tenho 16 anos, sempre fui privado de tudo nessa vida. E agora descubro que sou de uma família de lobisomens! — exaltou-se Nathanael — Minha avó...o monstro..., sei lá o que, tentou matar minha namorada e você vem me falar de SIMPLES?!!

Dona Tica levantou-se rapidamente, seus olhos logo mudaram de cor, foram de um castanho claro para um laranja ardente feito larva.

— Namorada?!... Eu ouvi direito? Namorada?! — gritou ela.

— Sim, estamos namorando. Estávamos prontos para lhe contar...até que você nos atacou. — Disse Nathanael rispidamente.

— Vocês não podem namorar. — advertiu-o o Velho Alfredo.

— Além desse maldito destino, eu ainda não posso buscar ser feliz? — perguntou Nathanael encarando piedosamente a avó.

— Você nunca será feliz ao lado de uma Prata. Nós somos sua família. — Respondeu-o Dona Tica.

Nathanael levantou-se rapidamente, mas antes que pudesse dizer alguma coisa, a avó pegou uma lanterna na gaveta do antigo armário e dirigindo-se para a porta da cozinha ordenou:

— Acompanhem – me! 


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⏰ Última atualização: Jul 20, 2020 ⏰

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