A madrugada espreitava lá fora, fria e a fazer-se anunciar sem piedade, e os tons pastel borravam o céu fazendo-o parecer uma pintura digna de museu. Os primeiros raios de sol ainda tímidos espreitavam por entre os ramos das árvores completamente expostas ao frio que se fazia sentir. Não pareciam muito, mas eram o suficiente para um sentimento bonito de esperança florescer dentro da jovem britânica de cabelos brilhantes.
Os rostos cansados à sua volta não pareciam estar atentos ou interessados em apreciar aquele momento único, mas a loira estava e sentia-se agradecida por puder testemunhar algo tão especial. Não que fosse a primeira vez que via o nascer do sol, mas sem dúvida, aquele momento marcava o início de uma aventura, para a qual Victoria não sabia se estava preparada.
Nada daquilo tinha sido planeado, mas o comboio já tinha partido e não havia como voltar atrás pelo menos nas horas que se seguiriam. A jovem nunca pensara que teria coragem para simplesmente fugir, mas a inconstância da realidade que a envolvia fizera-a simplesmente abandonar o quente da sua habitação e vaguear por Londres. Percorrer as ruas frias e desertas de uma cidade adormecida, e acabar sentada num banco de madeira com fissuras e ferro enferrujado com um bilhete para nenhum sítio em concreto na mão, à espera de algo que nem ela sabia se viria.
Talvez fosse a sonolência que o movimento uniforme e calmo do comboio lhe transmitia, ou simplesmente a turbulência de emoções que vagueavam na sua mente, ou simplesmente as horas de insónia que a acompanhavam a afetarem-na, mas Victoria não se sentia arrependida naquele momento. Vira o nascer do sol de um sítio bastante diferente em comparação com a sua varanda, onde passava grande parte das noites. Vivera a cidade onde tinha nascido, e que conhecia tão bem de dia, de uma forma diferente. Experienciara a estação de comboios à noite, e tinha sido surpreendida pelos seus próprios cinco minutos de coragem.
Talvez depois daquela noite tudo voltasse ao normal. Talvez as suas insónias acabassem, os seus pais voltassem a suportar estar no mesmo espaço e a sua irmã parasse de a pressionar para ser alguém que ela, definitivamente, não era. Mas naquele momento, tudo o que importava era a luz dourada a trespassar as janelas de vidro sujas do comboio, o calor que lhe tocava no rosto de forma quase carinhosa e as pessoas, que mesmo não notando, partilhavam aquela memória com ela.
As olheiras gentilmente pousadas debaixo dos seus olhos castanhos denunciavam de quem ou do quê é que a jovem fugia, mas mesmo que nunca fosse fazer as pazes com os seus demónios, algo naquele sentimento familiar e aconchegante que o meio de transporte lhe transmitia permitia-a não se sentir tão cansada como seria de esperar.
A luz começou a dissipar-se e a paisagem que se assemelhava a borrões de tinta rápidos e confusos começou a prevalecer sobre o horizonte, o que significava que se estaria a aproximar provavelmente do seu destino.
Observou, então, detalhadamente, os rostos das pessoas que partilhavam aquela carruagem com ela e sentiu-se confortável, mesmo que em segredo, em desenhá-los. Havia uma mãe, com uma criança adormecida ao colo, um homem já nos seus cinquentas com uma pasta preta pousada ao seu lado no chão, uma mulher morena cuja atenção estava voltada para um livro cuja capa não reconhecia e um homem já de idade que segurava a sua bengala com uma mão e o jornal agressivamente dobrado com a outra, e Victoria questionou-se sobre o que fariam ali.
Não era estranho que os comboios estivessem sempre cheios a quase toda a hora, mas era estranho que ninguém se questionasse do motivo que levaria alguém a apanhá-los tão cedo, que ninguém se preocupasse com o facto da vida começar tão cedo e parecer que não se aproveitava nada.
Depois de rabiscar no seu caderno de capa dura, preta e já meio gasta, a rapariga de cabelos brilhantes pousou os ténis sujos e meio partidos em cima do banco à sua frente e permitiu-se sentir o último resquício de calor que lhe tocou no rosto, completamente alheia ao facto de que talvez todos os seus outros companheiros indiretos de viagem tivessem notado no seu sorriso infantil.
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Deixar Ir
Short StoryUma artista com insónias e um músico amador. Cada um com a sua realidade, com os seus demónios e com as suas esperanças. Victoria só queria que as suas insónias lhe dessem uma trégua. Noah só queria ser aceite como era. Duas histórias que se cruzam...