8. Penitência, Cristo e o Empalador

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"Ele está aqui porque é o mais perto da morte que pode chegar sem se matar".

Não sabia exatamente como essas palavras haviam chegado. Como tivera ciência delas na voz de Sumi. Talvez ela tivesse falado alto demais fora do arsenal quando o dia já findava, talvez fossem seus poderes de audição ampliada. Mas certamente ajudara o silêncio que o tomara quando ficou sozinho a caminho do Castelo pela passagem secreta e fundida.

Depois não ouviu mais nada, o caminho era de uma escuridão tácita. Somente a afirmação ressoava e somente ela reluzia com sua veracidade.

Quantas vezes havia beirado o abismo durante todo aquele mês penoso? Desejado que algo viesse para lhe suplantar e ao mesmo tempo condenado a si próprio por não querer passar pelo que sabia que tinha de suportar? Todas as vezes que idiotamente se pegou chorando nos cantos do Castelo pelas memórias que este evocava?

Uma dor com gosto de culpa e vergonha assombrava Alucard sempre que se lembrava, sempre que tinha que pensar nele. Drácula. O monstro não humano que quase fora responsável pela carnificina de todas as vidas na terra, comandando um verdadeiro exército infernal.

Drácula, que também era seu pai legítimo e marido de Lisa Farenheight Tepes.

A vergonha se multiplicava de várias formas. Uma delas era estar sendo abrigado naquele Castelo. Porque mesmo que fosse seu por direito, o sangue naquelas paredes e passagens era do vampiro. Durante séculos as raízes do mesmo foram plantadas naquele solo obscuro, há tanto tempo que ele sequer sonhava nascer. Era como estar na frente de um Deus, sendo apenas um mortal indefeso á todas as artimanhas terríveis dele. E essa essência indestrutível parecia rir dele ali. Tão deslocado era o anjo de luz, gozando de tudo daquele lugar em inegável conforto. Depois do que fizera ao próprio sangue.

Essa ambiguidade do seu ato era como uma barra de ferro em seu coração. Sim, ele precisou, teve de matar Dracula pela memória de Lisa. Pelo único pedido dela antes de perecer nas chamas e ao qual seu pai não havia atendido: Deixar os humanos em paz. E o fez. Junto de Trevor e Sypha, assassinou o vampiro com uma estaca certeira. Sua mão nem mesmo havia tremido no momento.

Ah que cena deprimente havia sido aquela! Quando durante a luta entre os dois apenas, caíram no quarto do bebê. Da criança. Os brinquedos, as pinturas, móveis e o retrato perfeito de uma época perfeita tinham sido um choque no coração corroído do rei vampiro, fazendo-o ver que estava quase destruindo o próprio filho. A única coisa que ainda existia e que o ligava a esposa morta, o sangue o corpo fundido de ambos.

E quando Dracula, o impiedoso Empalador enxergou e sentiu isso tentou se voltar para o filho atirado no chão

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E quando Dracula, o impiedoso Empalador enxergou e sentiu isso tentou se voltar para o filho atirado no chão. Tomado por culpas e memórias jamais imaginava que o mesmo friamente o atacaria com uma estaca. Matando-o, tornando pó, como Lisa.

"Do pó vieste, ao pó retornarás".

Será que era por isso que os vampiros tornavam-se pó ao morrerem pela estaca? Para redimir suas almas de alguma maneira, dando a eles um pingo da santidade, ainda que apenas o inferno os recebesse de braços abertos?

O mau não podia redimir o mau. Drácula, que no fundo já era só um demente digno de pena estava morto. E a humanidade fora salva.

Cumprira seu objetivo mais fácil e rapidamente do que havia imaginado. Talvez até do que tinha desejado.

E então quando eles o deixaram, todo o peso estrondoso havia despencado sobre ele com uma velocidade medonha. O herói se regozijou pela derrota do monstro inimigo, mas agora o filho sentia o assassinato do pai.

Nos primeiros dias era como se os demônios o puxassem em cada canto do castelo para uma nova sessão de tortura.

"Morto, morto"
"Seu pai está morto, você o matou!" "Chore mais um pouco órfãozinho
desolado, nos deixe sentir sua culpa, sua lástima. Aceite a penitência".

Mas afinal isso não era perfeitamente adequado? O menino perfeito sob todos os aspectos, o qual acreditavam que livraria a todos os humanos das garras do demônio... Nem que para isso tivesse de sacrificar sua própria vontade. O Messias daquela tragédia, o soldado adormecido.

"O vampiro Jesus flutuante" como toscamente Trevor o havia nomeado no dia em que se conheceram.

Em alguma mente isso podia fazer algum sentido; Deus era o patrono da chacina, como Drácula havia tentado começar também. E para livrar os mortais sempre foi preciso um bezerro que aceitasse o sacrifício, o sangue que se derramasse sobre uma perfeição imaculada.

Porque apenas Cristo aceitaria tudo isso tão calada e obedientemente... Mas Alucard não podia ser Jesus! A morte estava em suas mãos, a dele em suas palavras.

E mesmo agora quando tinha o direito de ser chamado de herói, sofria a penitência que julgava necessária. Limpando sua alma, tornando-a tão pura e valiosa quanto a de um verdadeiro anjo... Sim, um arcanjo frio e categórico para seus objetivos. Era exatamente isso que era.

Mas isso tudo agora parecia tolice; devaneios sem razão. Sumi e Taka eram a realidade, o futuro que viera para ele.

A penitência estava se abrandando, o Empalador não existia mais e o Cristo vampiro tentava compreender esse bizarro fato sobre si mesmo: Ele era perfeito, num mundo dentro de uma realidade quebrada.

Mas não tinha mais importância, as trevas do abandono estavam clareando desde que aqueles dois haviam chegado a sua porta. A partir de então deveria se focar por inteiro somente no futuro. Eles eram tudo que ele precisava, as tochas vivas de uma cerimônia instigante, familiar e segura. Não eram? Com seus sorrisos e agilidade contagiante?

Sim, o príncipe tinha completa certeza disso.

Golden Tears - O príncipe AnjoOnde histórias criam vida. Descubra agora