A Casa dos Espelhos

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 Não é do feitio das crianças se preocupar com o tempo. A maioria delas passa pela infância sem perceber que estão morrendo a partir do segundo em que nascem. Contudo, me recordo claramente do dia em que me dei conta de que eu envelhecia.

Eu tinha por volta dos treze anos e encontrava-me extasiada por enfim vivenciar o maior sonho de um pré-adolescente: passar um dia inteiro sozinho em casa. Naquela manhã em particular, meus pais decidiram que iriam à cidade vizinha fazer compras para o jardim, e consideraram-me responsável o bastante para permanecer na solidão do lar quando disse que não queria acompanhá-los.

Nunca tive dificuldades em me manter apartada do convívio social, logo, bastou que eu ouvisse o motor do carro para que eu corresse ao meu quarto, colocasse uma música para tocar em som ambiente e mergulhasse na leitura de contos clássicos de fantasia.

A forma como eu conduzia a minha juventude, na solidão do meu quarto, era objeto de críticas por parte de minha mãe, que sempre que possível me lembrava de que eu estava desperdiçando a mocidade ao me isolar do resto do mundo. Claro que eu discordava.

O livro parecia ganhar vida própria, e cada palavra impressa atraía minha atenção às folhas amareladas daquela edição antiga, dada a mim pela minha professora de Português quando ela se deu conta de que minha mente não conseguia permanecer no mundo real por muito tempo. Eu estava imersa na trama quando ouvi o primeiro toque. De início tentei ignorar o som abafado que parecia vir de fora do quarto e retornar à leitura, contudo, o som mais uma vez se fez presente. E de novo. E de novo.

Não podia ser os meus pais, eles haviam saído não fazia nem uma hora, e mesmo que houvessem decidido voltar mais cedo, possuíam as chaves. O toque repetiu, cortando o ar e difundindo-se como um eco, e o seu som afinava a cada batida, como um tilintar vítreo de unhas batendo contra um copo.

Minha mente jovem e curiosa pôs-se em estado de alerta, acompanhando todo ou qualquer ruído que ousasse adentrar meus tímpanos, e quando o barulho tornou a repetir, fechei o livro e levantei-me da cama. No exato momento em que fiz isso, o som cessou.

Após uma rápida busca, constatei que não havia nada errado, nenhuma torneira pingando ou janela entreaberta, então imaginei que talvez pudesse se tratar de algum pássaro batendo na veneziana ou sobrevoando o forro da casa.

Pronta para voltar ao meu quarto, passei pelo banheiro e parei abruptamente quando me dei conta de que era ali a origem do som desconhecido que outra vez ressoava. Adentrei o cômodo e chequei a torneira, mas o terror veio a seguir, quando levantei os olhos para encarar o meu reflexo no espelho, ou o melhor, um reflexo no espelho. O horror me assolou, unhas imaginárias rasgaram minha carne e fixaram-se em meu peito diante do que eu estava vendo, e nem mesmo grandes autores de terror seriam capazes de traduzir em palavras o medo indizível que se apossou do meu sistema nervoso e paralisava meu corpo. Parada ali, diante de mim, refletida no espelho do banheiro não estava a minha imagem, e sim a de uma outra mulher. Seus olhos velhos e cansados, marcados pelo tempo mantinham-se fixos em um ponto entre a superfície refletora e eu, e os dedos enrugados e retorcidos eram responsáveis pelo tilintar repetitivo.

Não havia mais coração em meu peito, pois ele ameaçava subir pela garganta. Deixei o celular sobre a pia e abandonei o banheiro o mais rápido que pude, tropeçando em meus próprios pés enquanto apostava uma corrida imaginária contra a insanidade, e mesmo estando de volta ao quarto, eu ainda podia ouvir os sons tortuosos, que para mim, era uma espécie de ameaça de que eu estava enlouquecendo.

Pensei em ligar para os meus pais, contar à eles o que eu havia acabado de presenciar e pedir para que eles viessem em meu socorro, entretanto, precisei lidar com o fato de que tinha esquecido o celular na pia do banheiro, logo abaixo do espelho. Fraca e sem coragem o suficiente para levantar do chão onde eu me encontrava, abracei meu corpo e comecei a fazer algo que não estava acostumada. Comecei a rezar. Orei para todos os deuses e santos que eu conhecia e pedi para que, acima de tudo, eu pudesse sobreviver àquele dia ainda em posse de minhas faculdades mentais.

O som parecia cada vez mais alto, e não apenas isso, ele também estava mais perto. Mexendo-me minimamente, olhei em volta, de novo buscando a fonte dos ruídos para que mais uma vez minha razão fosse questionada. Os toques agora vinham do espelho do meu quarto, evidenciando figuras assombrosas que me encaravam do outro lado do vidro. Vários pares de orbes negras fitavam-me enquanto suas vozes, vindas até mim como gemidos lamuriosos me convidavam a juntar-se a eles.

Nem mesmo se eu fosse mais velha e tivesse lido todos os livros de todas as religiões existentes, não seria capaz de entender o que de fato estava acontecendo, em que momento a barreira entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos estreitou-se diante de mim e eu passei a ser capaz de vê-los e ouvi-los.

Mais uma vez me vi correndo pela casa, agora na tentativa de buscar refúgio em algum cômodo sem espelhos, no entanto, assim que pensei estar segura no quarto dos meus pais, o som de garras arranhando o vidro me chamaram a atenção para a janela, onde me deparei com uma figura sombria à espreita. E foi como se a casa toda tivesse ganhado vida. Percorri os corredores, fugindo das assombrosas melodias que irrompiam através dos móveis e dos olhos lúgubres que me seguiam por toda superfície que permitisse reflexão. Móveis. Janelas. Televisores. Talheres. Tudo me assistia. Tudo me chamava. Eu gritava, chorava e implorava para que me deixassem, contudo, as vozes pareciam penetrar em minha mente e me possibilitava vê-los mesmo quando eu fechava os olhos.

Quando meus pais enfim chegaram, encontraram-me em estado torpor, deitada abraçando as pernas na calçada em frente de casa. Foi apenas fora dos portões que consegui obter paz.

Tudo isso aconteceu há muito e muitos anos, porém lembro-me como se fosse ontem. Não seria uma experiência fácil de se esquecer mesmo se a jogasse nas camada mais profundas da minha psique, ainda mais quando aqueles seres haviam saído do espelho e passado a me perseguir cada vez mais de perto. Eu não os via apenas quando ia ao banheiro ou um provador, pois eles estavam presentes em cada segundo da minha vida com suas feições retorcidas e membros desproporcionais, não me deixando esquecer o sabor amargo de ter que deixar a infância para trás.

Quanto a senhora de olhos cansados, nunca mais me visitou. Tudo o que vejo quando olho pelo espelho do meu pequeno cubículo no asilo municipal, é o reflexo de um banheiro. Ao longe, tenho certeza de que posso ouvir uma música antiga, a qual me remete a muitas lembranças. Bato repetidas vezes no vidro até que enfim a música para e ouço passo vindo em minha direção.

Preciso dar um recado a ela, é de extrema importância. Bato no espelho até que uma jovem de treze anos aparece. Ela me vê e sinto o seu pavor através do tempo. Sei que preciso ser rápida e falar antes que ela saia correndo.

Mas de repente me esqueci do que ia dizer.

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⏰ Última atualização: Jul 25, 2020 ⏰

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