1 | Terror Noturno

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   A respiração ficava cada vez mais pesada enquanto eu corria, em meio a tantas árvores, sentindo galhos secos cortando meus pés descalços e frios naquela madrugada que parecia não ter fim. Eu não sabia como havia chegado àquele lugar, nem o real motivo da fuga, apenas que alguém estava me perseguindo e era possível sentir no ar o ódio e a sede de sangue emanados em minha direção.

   A essa altura já nem tentava me orientar seguindo trilhas, apenas corria, torcendo para que a criatura que me buscava incessantemente desistisse, a chance de sair daquele labirinto se reduzia a cada passo meu em direção ao interior da mata. Paro por um instante, ouvindo, esperando, tentando descobrir se ainda estou sendo seguida, se ainda precisava correr. É nesse momento que vejo uma luz brilhante à minha direita, muito distante, mas ainda assim uma esperança. Reúno tudo o que me resta de energia e corro naquela direção.

   A esperança é um gás que nos faz descobrir força onde não existe. Em poucos segundos estou bem próxima do meu destino e é aí que eu descubro: a esperança também nos cega, ensurdece. Os sons de passos haviam sido substituídos por um som de asas que batiam freneticamente, alto demais para ser de um animal. O desespero toma conta do meu corpo e, em uma tentativa de escapada, tropeço em alguma coisa. Talvez eu conseguisse me manter de pé, não fosse a visão do cadáver mutilado no chão, bem onde acabara de tropeçar.

   Meu corpo cai com um baque na terra úmida. Tento não fazer barulho, mas o grito que se forma na minha garganta faz todo meu corpo tremer em choque. O som de asas havia parado e a luz vinha em minha direção, mas não é o alívio que preenche minha mente e sim o pavor. À minha frente, encaro a silhueta de uma mulher alada. Talvez isso me fizesse acreditar em anjos, não fosse a expressão diabólica naquele rosto, exatamente igual ao meu.

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   As madrugadas costumavam ser assustadoras. Ficar acordada no quarto pouco iluminado em que qualquer sombra poderia indicar um espírito. Quando pequena, cobria a cabeça com os lençóis recém lavados a fim de ignorar as imagens medonhas que se formavam a partir de objetos simples daquele ambiente tão familiar. Hoje, procurar pelas formas do lugar me traziam tranquilidade, era nos sonhos que o perigo se escondia. Mais uma vez, o sono acaba e a noite não. Não sei como ocupar o tempo até ser aceitável sair de casa. Acabo calçando chinelos e vestindo um casaco por cima do pijama. Com sorte, ninguém ia ver ou julgar uma garota insone, andando mal vestida, pela orla às 4h da manhã.

   Havia algo calmante no balançar das ondas e na maresia que inundava meus sentidos. Já estava cansada de procurar respostas para o pesadelo que me persegue há meses. Todo tipo de psicólogo, religioso e hippie já tentou desvendar o sonho recorrente. Apesar de todos os pontos de vista profissionais e crentes, pensar que eu tinha uma aversão por mim mesma e que, por isso, via minha morte por meio de um assassinato vindo de uma figura com o meu rosto, era ridículo. Eu não me odeio. Não quero me causar dor. O único vazio dentro de mim é a pequena peça que não consigo encontrar para completar o quebra-cabeças e entender todo esse tormento.

   Aproximo-me da água translúcida e fria, pegando um pouco em minhas mãos. Olho meu reflexo iluminado pela luz da lua, faço um desejo. Não peço pelas respostas. Peço pela paz, pela tranquilidade de espírito que eu vim buscar em Grumari. Fecho meus olhos e deixo as gotas escorrerem pelos meus dedos. Quase posso ouvir uma voz, que some depressa, me fazendo acreditar que foi apenas imaginação.

   É quase amanhecer quando retorno para o meu pequeno apartamento. Tento recuperar algumas poucas horas de sono antes do trabalho. Quando acordo, sinto minha garganta arranhar e a cabeça dói. É isso que se ganha por madrugar na beira mar. Mesmo com o mal-estar, me visto para cumprir meu turno. Não se pode vacilar com um emprego que te recebe como família.

   Chego à livraria perto do horário de abrirmos, como todos os dias. Pelo vinco que se forma entre suas sobrancelhas, é possível dizer que Marco – meu chefe – está preocupado com alguma coisa na logística da loja e, antes que eu pudesse cumprimenta-lo com um "bom dia", começa a despejar tarefas em cima de mim, das quais esqueço mais da metade no minuto em que ele as pronuncia. Organizo o balcão com os lançamentos de nossa editora parceira e me preparo para receber os livros recém chegados antes de abrir para o público, rezando em silêncio para que o dia seja melhor do que suas primeiras horas.

   Estou catalogando os livros por prateleiras quando percebo um movimento no corredor ao lado. Fico na defensiva, ninguém deveria estar circulando pela loja ainda. Me preparo para tocar o alarme de assalto, mas sei que, se anunciar um assalto que não está acontecendo, Marco vai ficar ainda mais estressado e fazer da minha vida um inferno pelo resto da semana. Fico completamente imóvel e tento ouvir sons de passos ou algo que indique movimentação. Silêncio. Sigo devagar pelo corredor, abafando o som dos meus passos. Virando à esquerda, encontro a origem do movimento que havia visto antes: uma garota loira, parecia jovem, se virando lentamente para me encarar. Está vestindo roupas caras, mas a blusa parece ser parte do uniforme da escola local. Seu rosto está extremamente pálido e a boca nem mesmo tem cor. No entanto, o mais assustador em sua aparência era a enorme mancha de sangue escuro em seu peito.

- Oi... – digo hesitante – não sei o que você está fazendo aqui, mas me parece muito que precisa de ajuda. – Seu olhar vazio continua buscando o meu e, por um momento, ela parece nem mesmo estar lá de verdade. Começo a me perguntar se estou imaginando toda a situação e avanço alguns passos, tentando tocá-la. Antes que eu consiga erguer minha mão, sinto a pressão esmagadora de seu aperto em meu pulso esquerdo.

- Ela está chegando. – Sussurra tão baixo e desesperadamente que quase não consigo ouvir. – Você precisa ir para o mais longe possível. Ela não vai parar. Você precisa ir.

- Do que você está falando? Vamos, você precisa de um médico. – Digo a ela, apesar do arrepio que percorre minha espinha.

- Silena, você não tem tempo. Eu não consegui me salvar, mas você pode. Procure por Donatti. Siga sua linhagem.

   Algo na forma como essa garota fala me faz sentir que ela realmente acredita no que está dizendo. Ouço passos pesados no corredor e me viro para dizer ao Marco que precisávamos ajudá-la, mas ela não está mais lá.

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