Prólogo

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   Acordo cedo demais. O sol ainda não nasceu e há uma neblina nojenta e insistente que se gruda ao meu corpo e à relva que me cerca. Nada surpreendente para alguém que está dormindo no meio da floresta feito um bicho. Claramente, o que eu sou agora.

   Ajeito o corpo e caminho em direção à estrada. O despertar precoce pode servir aos meus propósitos hoje, afinal, mais uma noite nessas condições e todo o meu esforço seria em vão. Caminho até conseguir ver a casa de múltiplos andares, aninhada entre alguns carvalhos e ipês onde Amber mora. A única coisa que me interessa nesse lugar.

   Observo o imóvel até que a luz de um cômodo se acende, no segundo andar. Imagino que se trata dela, se preparando para um dia normal na escola, com seu uniforme impecável, sapatos caros e olhar arrogante. O tipo perfeito. Aquela com quem ninguém se importa o suficiente para questionar as atitudes e decisões.

   Poucos minutos se passam até a loira sair pela porta da frente sem que ninguém a veja, ninguém além de mim. Se soubesse o que a esperava, talvez tivesse reconsiderado a carona que aquele cara havia oferecido. Henrique? Não! Hector. Parece que hoje a sorte é minha e não dela. Apesar da aparência despreocupada, Amber parece sentir que alguma coisa está errada. Um cheiro diferente, uma energia estática. É quando começa a olhar para trás que surge minha oportunidade, aproveito sua distração para surgir à sua frente, um pequeno truque que consome minha energia, mas não importa muito, estou prestes a reabastecê-la.

   A garota deixa escapar um grito agudo enquanto pula para trás, deixando um espaço entre nós que a faz se sentir segura.

- Não tenho esmolas para você! – diz enfaticamente em desdém.

   É de se esperar que eu seja mesmo confundida com um pedinte. Minhas roupas estão sujas, o cabelo desgrenhado e esse corpo já não me serve tão bem quanto há cinco meses. Replico seu tom de voz enquanto sinto a natureza exercer a sua magia, me unindo ao ser humano desprezível à minha frente.

- E quem está pedindo esmolas? Talvez você devesse repensar seu tom de voz.

   Ela revira os olhos, em sua insolência tão familiar aos que compartilham de sua presença diariamente. Mesmo com a postura desafiadora e destemida, seu desconforto se evidencia enquanto ela desvia de mim e apressa os passos. Em outras circunstâncias, teria aproveitado o momento para me divertir com minha vítima. Infelizmente, me sinto mais fraca a cada minuto, não posso parar agora, estando tão perto. Sem riscos dessa vez.

- Amber – eu chamo, sabendo que a surpresa por saber seu nome seria suficiente para que ela olhe para mim. Realmente olhe.

   No momento em que seus olhos encontram os meus ela sabe que cometeu um erro. Sinto o calor percorrer meu corpo como se eu estivesse mais uma vez envolta em chamas. Minhas pernas ficam mais firmes, a respiração fácil e o ânimo da juventude me encontram outra vez. Observo a garota à minha frente deixar seus pertences caírem no chão com a surpresa de ver seu próprio rosto refletido no meu. me aproximo o suficiente para tocar sua face e coloco conforto nas minhas palavras, apenas uma vez.

- Não consegue ver? Eu sou você.

   Pressiono a mão livre onde deve estar seu coração, aguardando um instante até que pare de bater. O desespero em seu rosto é visível apenas por um segundo e o órgão não está mais em seu peito. Deixo a casca vazia que antes fora a adolescente para trás, confiante de que logo irá se desintegrar no vento e sigo recolhendo o que restara. Uma bolsa de marca, na qual guardei o coração recém coletado e um celular, ainda com uma mensagem digitada pela metade, nunca enviada. 

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