2 | Donatti

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   Decido por não dizer nada a Marco sobre o que acabara de acontecer. Parte de mim acha que imaginou a coisa toda, entre pesadelos e noites mal dormidas. Outra parte acha que a garota estava assustada demais e não queria que a vissem. Por fim, o que me impede de contar a ele são as coisas que ela disse sobre mim. Mesmo que fosse apenas fruto da minha imaginação, como ela sabia o meu nome? E de onde eu poderia ter tirado o nome Donatti e todo aquele papo sobre minhas raízes? Loucura demais para ser encarada às dez da manhã.

   Tento seguir meu dia sem pensar muito sobre o assunto, mas minha mente continua retornando aos olhos assustados da garota que tentava me alertar de algum perigo. A angústia é tanta que ando pela loja sem parar, preciso mover minhas pernas.

   Entrando no corredor de ficção e mitos, descubro que as estranhezas não pararam pela manhã. Como se tivesse sido puxado, um antigo livro, de capa de couro marrom e folhas envelhecidas, cai de uma das prateleiras, ficando aos meus pés, como um convite. Em qualquer outro dia eu teria simplesmente devolvido ao seu lugar, porém, não hoje. Meu estômago vazio se revira descontroladamente quando leio o título: As raízes da Wicca – de 1600 aos dias atuais.

   Encerro meu turno e sigo para a orla com o livro escondido dentro da minha bolsa, como uma bomba relógio, prestes a explodir. Sentada na areia fofa enquanto o crepúsculo se pronuncia no horizonte, começo a folhear as páginas delicadas do exemplar de 1975. Havia de tudo lá. Desde o antigo Egito e Babilônia até os movimentos de reformulação da crença Wicca nos anos 60. Não havia nada de muito relevante naquelas páginas, mas um parágrafo, especificamente, chamou minha atenção.

 Não havia nada de muito relevante naquelas páginas, mas um parágrafo, especificamente, chamou minha atenção

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   Algumas semanas se passam sem que nada fora do normal aconteça. Chego a pensar que tudo aquilo foi fruto de muito estresse e saudades da minha família. Quando minhas férias se aproximam, começo a me preparar para passar algumas semanas com os meus pais.

   É uma terça-feira à tarde quando chego a Petrópolis. Sou recepcionada pela neblina do mês de junho e imediatamente me recordo dos motivos de ter deixado a cidade. Avisto minha mãe me aguardando na rodoviária, mesmo depois de dizer que não era necessário. Seus olhos estão molhados e, pela primeira vez em alguns meses, percebo o quanto ela sente minha falta. Não dizemos nada enquanto nos abraçamos por um longo momento e logo seguimos para sua antiga casa.

   Meus pais não eram o tipo de pessoa que demonstra carinho o tempo todo, eu já havia me acostumado há bastante tempo. Também não são pessoas ligadas a espiritualidade, na verdade, são completamente descrentes, o que tornava ainda mais difícil fazer as perguntas que eu precisava que fossem respondidas. Eu sabia que minha família descendia de franceses e que, mais especificamente, tínhamos alguns parentes que ainda residiam em Marselha há gerações. Talvez isso não fosse de grande relevância na minha busca, não fosse a fotografia que havia na sala da antiga casa mostrando algumas mulheres reunidas à frente de um tipo de farmácia chamada Donatti's e essa é a primeira coisa que eu vejo quando chegamos.

- Mãe, – eu chamo – quem são essas mulheres na fotografia?

   Passamos por um minuto de estranheza e até parece que minha mãe nem mesmo se dava conta de que a foto estava ali.

- Ah! – ela exclama – são algumas das ancestrais francesas do seu pai. E essa era a loja de ervas da família. Muito antiga, mas ainda existe. Tradição!

- Sempre foram três na foto? Na minha memória havia quatro delas. Que estranho!

   Minha mãe franze a testa por um momento e percebo que também está estranhando algo, mas logo deixa para lá e, com um gesto de desdém, segue para a cozinha dizendo que precisava fazer o café.

   Deixo minhas coisas em meu antigo quarto e observo o ambiente em que passei grande parte da minha vida. Em um dos cantos há uma escrivaninha e na parede logo em frente, dezenas de antigos desenhos que eu costumava fazer quando tinha pesadelos. O mais recente era, claramente, um auto retrato, mostrando a mim mesma com asas negras que envolviam o meu corpo. Percebo que o pesadelo recorrente vem acontecendo há muito mais tempo do que eu me dava conta, apenas aumentou sua frequência nas últimas semanas.

   Tomamos café e ligamos a TV enquanto atualizo minha mãe sobre minha vida no Rio de Janeiro. Ela está orgulhosa, e tenta não demonstrar que gostaria que eu estivesse em casa com ela. As coisas têm sido difíceis para ela com o meu pai doente, que demandava muitos cuidados entre um turno e outro que ela fazia no pequeno restaurante próximo à casa.

   Ambas nos assustamos quando começa a tocar na TV a introdução que anuncia uma notícia urgente, porém, só eu fico gelada ao ver a foto da garota loira, que vi na livraria, estampada no jornal.

"Foi identificado, na manhã de hoje, o corpo encontrado, no fundo do rio, na cidade de Petrópolis, interior do Rio de Janeiro. O material genético encontrado permitiu a identificação e, após muita investigação, descobrimos se tratar de Amber dos Anjos, desaparecida há cerca três meses. Apesar do tempo de desaparecimento, dados da perícia indicam que a jovem estava morta há pelo menos seis meses. O caso intriga especialistas e todo tipo de teoria surge em torno do assunto desde que as informações técnicas foram divulgadas. Voltamos, a qualquer momento, com mais notícias."

   Nessa noite não tenho pesadelos, nem mesmo sonhos. Nessa noite eu não durmo, meus olhos se recusam a se fechar.


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⏰ Última atualização: Aug 04, 2020 ⏰

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