03. A expectativa que ela cultivava

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— E esses são os que adotei mais recentemente! — disse dona Daisy com entusiasmo. Ela é minha vizinha de 60 e muitos anos do andar de baixo e Katy já havia me avisado de suas abordagens meio inconvenientes, mas eu não pude evitar. Não quando seu semblante era tão adorável. Quando dei essa justificativa para Katy, ela cerrou os olhos e disse que eu mentia, que eu a deixava falar pelos cotovelos sobre seus bichanos por causa das travessas das mais deliciosas comidas que me fazia e fazia questão de deixar em minha porta. Puff, claro que não era por isso. — Este se chama Elvis — voltou a falar, apontando o dedo enrugado para a tela do celular, onde seu mais novo adotado gato se espreguiçava com gosto, fazendo minhas olheiras suspirassem com a inveja. Eu balancei a cabeça, elevando as maçãs do rosto o mais alto que podia para que ela prosseguisse com sua exibição sem a impressão de que eu não havia achado Elvis fofo o suficiente. Não queríamos isso, não é mesmo? — Ah! — ela suspirou ao dar de cara com outro gato. Sua pelagem era amarronzada e seus olhos enormes. Não me parecia muito diferente dos outros cinco anteriores. — Esse gato é meu xodó, Ellie! Tem que vê-lo tentando subir em minha cama. Chama-se Shawn!

Engasguei de súbito e precisei de suas tapinhas gentis nas costas para lidar com a surpresa de ter ouvido aquele nome.

Claro que eu não era nenhuma ex-maluca, eu sabia me portar quando o nome de Shawn aparecia em uma conversa aleatória, mas ainda me doía o peito. Eu ainda sentia meu coração ficar do tamanho de um caroço de azeitona. É por isso que eu evito ao máximo pensar sobre ele, por mais que "e aí, Geoff, como você tá? Seus amigos estão bem? Zubin, Teddy — e então eu fazia uma pausa e olhava pra outro lugar como quem não quisesse nada —... Shawn...? — E essa era a parte que ele ria e dizia que Shawn estava bem", não era exatamente a melhor forma de fazer isso. Pode parecer meio cruel, quero dizer, eu não queria que ele estivesse mal, mas queria ter alguma ideia do seu sofrimento pelo nosso término. Às vezes, só às vezes, eu gostaria de saber se ele ainda tem as crises de saudade que acabam com meu final de semana — que é quando eu me permito ter algum tempo para ouvir o que minha cabeça tem a dizer. E ela sempre tá dizendo seu nome.

— Belo... — clareei a garganta. — Belo nome, dona Daisy.

— Você está bem, querida? — perguntou com as sobrancelhas ralas franzidas, mas com o dedo enrugado ansioso pronto para me empurrar de volta para o mundo felino.

— Estou sim, mas vou ter que subir. — Indiquei as sacolas de compras deixadas no chão. — Tenho muito o que fazer.

E não era mentira. Desde que cheguei as coisas não tem sido muito fáceis. O ponto do meu estúdio era responsabilidade de um cara que nem na cidade estava e isso me fazia ficar rodando no apartamento que nem uma barata tonta, morrendo de ansiedade, enquanto me ocupava de procurar a mobília para o estúdio, garantir contatos com as agências canadenses e tentar marcar ensaios prévios. Ele chegaria na segunda-feira e, já que estamos no sábado, creio que ainda faltem algumas voltas a serem dadas. Ao menos eu tinha conseguido alugar o apartamento. As contas ficariam um pouco apertadas no começo, tendo em vista que eu só poderia contar com minhas economias nova-iorquinas, a renda do estúdio não conseguiria me sustentar em seu começo, mas estava esperançosa que, quando o moço voltasse à cidade, tudo se resolveria e eu poderia voltar a ter papel higiênico de folha dupla.

São poucas coisas nessa vida que me trazem tanta alegria.

— Katy, comprei o que você... — Fui entrando em seu apartamento, que estava sempre destrancado, talvez por causa do meu vai-e-volta, e dei de cara com uma cena não tão agradável. Pra mim. Pra eles parecia estar... ótimo, por assim dizer. — AH! Foi mal, foi mal! — Fechei a porta bruscamente e balancei a cabeça, tentando por algum milagre apagar aquilo da minha mente. Quando desisti, larguei a maçaneta e caminhei decidida até meu apartamento, resolvendo entregar sua encomenda de biscoitos amanteigados depois. Bem depois.

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