Capítulo 1

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     Já era costume comer apenas coisas saudáveis na semana da colheita, além de aumentar a intensidade dos treinos físicos. Como se fizesse muita diferença, ao invés de ser morto no banho de sangue, poderia aguentar mais alguns dias, uau. Mas, ninguém muda a cabeça de Dinah Vulpe.
     Quando fiz 12 anos - a idade em que seu nome entra para a colheita -, minha mãe analisou diversas edições dos Jogos Vorazes, criando estratégias e me ensinando muitas coisas que poderiam ser mais eficazes que o combate corpo a corpo, já que eu havia herdado seus traços magros e fracos.
     Depois de 6 anos tendo essas lições sozinha, minha mãe finalmente saiu do meu pé. A parte que eu não gosto é que isso aconteceu pois os gêmeos completaram o décimo segundo aniversário, o que significava que passariam por 7 anos de angústia e medo de que seus nomes sejam sorteados para os Jogos Vorazes.
     Conseguia me lembrar do sorriso de felicidade da minha mãe quando eles nasceram, assim como também me lembro de cada noite de pesadelo que ela teve conforme os anos se passaram. Não conseguia nem imaginar o que ela pensava agora, tendo três chances de perder algum filho para a Capital. Bem, na verdade, a cada ano seu nome é colocado mais uma vez. Então eu tenho seis chances de ser sorteada, já meus irmãos, apenas uma.
     Noah e Noora são inseparáveis. Falam coisas parecidas, se ajudam, aprendem tudo juntos, até mesmo vestem coisas parecidas. Uma vez, quando Noora perdeu seu primeiro dente de leite, Noah "caiu" da escada, quebrando o mesmo dente que a irmã apenas para que ela não se sentisse sozinha. E quando o garoto ficou de castigo por ter desenhado na parede de casa, Noora fez o mesmo no quarto da mãe, tudo só para ficar de castigo ao seu lado. Juntos até o mundo acabar – era o lema deles.
     Agora, sentados para o jantar, os dois discutiam sobre o que fariam caso um fosse sorteado. Isso me causava ódio. Crescemos pensando no que fazer se formos sorteados, no que vamos fazer caso alguém que amamos for sorteado. É por esse motivo que restringi ao máximo meu contato com as pessoas. Apenas falo com a minha família, com Cassie – a garota das vendas -, e Ryan, meu único e melhor amigo. Quanto menos contato com outras pessoas, menos preciso me preocupar em perdê-las.

– Iremos rever os melhores momentos dos jogos da Ivette, para se lembrarem do que ensinei na semana passada. – Falou minha mãe.

     Ivette Li-Sanchez. A última vencedora que o distrito 5 teve, na 67° edição, e a atual mentora dos azarados sorteados. Ela venceu seus jogos envenenando muitos tributos além de matar outros com facas de arremesso, era um pouco mais agressiva do que a maioria dos tributos daqui, por isso impressionou a capital logo cedo. Ivette provava a teoria ensinada por Dinah: um pouco de força somado à uma boa quantidade de inteligência pode vencer.

– Eu já vi no ano passado, mãe. Irei me encontrar com Bryan. – Falei após colocar o copo de água vazio sobre a mesa e me levantar, dando um beijo na cabeça dos meus irmãos e depois beijando a bochecha de Dinah, que estava prestes a começar um discurso que eu evitei correndo porta afora.

     Bryan Li-Sanchez, o meu melhor amigo de longa data. Nossa amizade começou nos primeiros dias da escola, ele havia sujado meu cabelo com uma tinta amarela que estávamos usando para pintar o símbolo de Panem, e eu acabei chutando a canela do mesmo. Bryan passou uma semana inteira tentando pedir desculpas com a ajuda da mãe, Flora Li-Sanchez (sim, a irmã mais velha dele era uma vitoriosa dos Jogos Vorazes), mas só conquistou meu perdão quando comentou sobre ter uma raposa em sua fazenda.
     O distrito 5, antes de ser o responsável por toda a energia do país, era cheio de fazendas e tinha a agricultura como sua fonte de sustento, assim como o distrito 10 é agora. Os Li-Sanchez herdaram um grande território que acabava na beira do lago, bem próximo às montanhas. Como as águas eram cercadas pela floresta, a presença de vários animais selvagens no quintal de Bryan era algo normal.
     A partir do dia em que o desculpei pela tinta, nos tornamos amigos quase inseparáveis. Minha mãe estava sempre ocupada com os gêmeos que ainda eram bebês na época, e por isso eu passava o tempo todo na casa de Bryan, participando de cada festa da família, cada aniversário, e claro, enquanto ele assistia a irmã na arena.
     Eu não conseguia aceitar que a Capital obrigava crianças a assistir adolescentes matarem uns aos outros. A guerra já havia passado, o distrito 13 estava destruído, não havia qualquer sinal de rebeldes em nem um dos outros distritos. Os Jogos Vorazes eram imorais, não eram mais necessários. Agora são apenas a diversão dos moradores da Capital e o terror dos moradores de distritos.
     Havia andado por algumas ruas até entrar pelo portão da fazenda Li-Sanchez, encontrando Bryan sobre os degraus da entrada principal, me esperando com seu sorriso caloroso e cabelos loiros. Os olhos em um azul tão intenso que se assemelhava com a cor do lago para o qual estávamos prestes a ir.

– Bom dia, Vulpe. – Falou ele se levantando.

– Bom dia, Li. – Estávamos acostumados a nos chamar pelos sobrenomes, mas com o tempo fui adaptando seu nome de Li-Sanchez para Li-San, e agora, apenas Li.

     Como nossa amizade já é de anos, não precisamos conversar em voz alta para entender o que estava acontecendo. Enquanto andávamos, levei minha mão de encontro à dele, entrelaçando nossos dedos conforme íamos atravessando o jardim e entrando na floresta. Bryan tinha muito medo da colheita. Quando fez 8 anos precisou ver a própria irmã andar até o pequeno palco, ficando ao lado da tenebrosa e assustadora acompanhante de cabelos verdes que realiza a colheita no nosso distrito. Eu conseguia me lembrar exatamente da forma como ele chorou e abraçou a mãe, e depois como me procurou no instante em que foram retirados da prefeitura, o que significava que Ivette já havia partido para a Capital.

– Você não vai ser sorteado. – Foi o que falei de maneira firme.

– Você não sabe disso, Fynch.

     Fynch. Sinal vermelho. Ele não queria tocar nesse assunto e eu iria respeitar isso. Havia um acordo entre nós: quando o primeiro nome for dito de maneira séria, o outro deveria respeitar automaticamente. Ele fez isso quando comentei sobre o divórcio dos meus pais, e eu o fazia em todo ano, nessa semana específica.
     Andamos por 15 minutos até chegar no lago, era possível ver a barreira do distrito 4 e também as grandes torres que levavam a energia para todos os lugares. Aquela distância era o mais próximo que podíamos chegar sem que os pacificadores nos vissem, era a distância segura.
     Já estava me sentando na pedra diante do sol, como de costume, quando Bryan começou a tirar suas roupas, ficando apenas com uma cueca de tom roxo que deixava claro ter sido feita pela estilista de Ivette. A família deles ganhava muitas coisas desde a vitória da garota. Roupas, comida, convites para festas. Bryan já havia visitado a Capital duas vezes, e nas duas me trouxe pequenos souvenir, como um globo de neve com duas crianças brincando e um chaveiro escrito "eu amo a Capital", que eu me obriguei a guardar apenas porque Bryan que havia me dado.

– Vai ficar apenas me olhando?

     Perguntou o garoto me tirando dos meus devaneios. Abri um sorriso e respirei fundo. Já fizemos isso diversas vezes antes, mas eu sempre me sentia envergonhada na frente dele. A pele dele era levemente bronzeada, acompanhada de alguns poucos músculos, era atraente. O contrário de mim, que tenho uma pele tão branca que é possível enxergar minhas veias em alguns lugares, contrastando com o cabelo ruivo, além do meu corpo magro e com poucas curvas.
     Retirei os sapatos e meias, depois a calça e por fim, a camisa. Rapidamente corri pela pedra, pulando e sentindo o choque do corpo quente pela caminhada com a água gelada que costeava as montanhas.

– Eu não estou com medo de ser sorteado, Vulpe... – Começou Bryan nadando próximo á mim. – Tive um sonho ruim...

– Eu também. Mas é a primeira vez deles, Li. A chance de Noah ou Noora serem sorteados é quase nula.

     Comentei erguendo minha cabeça para ajeitar o cabelo com a água. Bryan era da família, ele acompanhou o crescimento dos gêmeos junto comigo, eu sabia que os amava tanto quanto me ama.

– Não. Eu sonhei que você era sorteada. E se isso acontecer... – Seus olhos se fecharam por alguns segundos, ele parecia procurar forças para poder falar. – Eu não posso viver sem você, Fynch.

     O abracei após dar um sorriso acolhedor. Já passamos por isso antes, já sofremos por antecedência e falamos coisas que acabaram se tornando um pequeno constrangimento ao fim da colheita, quando voltávamos juntos para casa e percebíamos que as palavras ditas jamais poderiam ser retiradas. Mas esse ano seria diferente, não havia motivo para declarações desesperadas e lágrimas ansiosas.

– Bryan, a mulher de cabelo verde não irá chamar meu nome.

Ou será que vai?

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⏰ Última atualização: Aug 04, 2020 ⏰

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