Capítulo 5 - Enquanto eu morro

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- 0 1 de setembro de 1 9 8 6 -

A água gelada da torneira tocou minha pele, me fazendo estremecer. Sequei meu rosto, encarando-me no espelho.
Olheiras um tanto quanto profundas tomavam conta dos meus olhos, resultado das noites em claro.

Era segunda-feira. Dia primeiro de setembro.

Seu aniversário.

Eu voltei até o meu quarto, me sentando na cama macia, e pela milésima vez, encarei a grande caixa triangular, embrulhada em papel de presente azul, que repousava sobre a escrivaninha.

Eu não tinha certeza se devia te entregar, mesmo após passar a noite acordado, ponderando sobre isso.

Nós... Não nos falávamos a meses.

Não foi proposital, só... Aconteceu. Aos poucos. Você escapou por entre os meus dedos como areia.

Nos afastamos. Coisa que prometemos um para o outro que nunca aconteceria.

E aqueles vinham sendo... Os piores meses da minha vida.

Você saía mais cedo todos os dias, para acompanhá-la até a escola, e sempre a levava para casa. Eu te via pela janela, as vezes.
E nos finais de semana, vocês saiam juntos. Depois de um tempo, eu comecei a inventar desculpas pra não acompanhá-los. E depois de um tempo, você parou de me convidar.

Era doloroso. Cruzar com você nos corredores, e fingir que mal te conhecia. Me sentar ao seu lado na aula, e não poder conversar com você.
Nos intervalos, trocar pequenos sorrisos e acenos, que não significavam nada.
Ouvir minha mãe perguntar sobre você, e não saber o que responder.
Te ver ao lado dela, sorrindo o tempo todo.

Mas... Era seu aniversário. Aniversários eram sagrados para nós. Todo ano, inventávamos algo divertido pra comemorar, e terminávamos o dia sempre do mesmo jeito: os dois jogados no tapete da minha sala, assistindo a um filme e nos entupindo de pipoca, refrigerante e doces.

Eu sabia que nada daquilo iria acontecer naquele ano, mas... Eu não podia deixar que passasse em branco.

Por isso, eu me levantei. Olhei para o relógio, fitando os ponteiros se moverem. Você sairia de casa dali a alguns minutos para buscá-la para a escola. Eu precisava ir rápido.

Abri meu armário, alcançando as primeiras roupas que vi pela frente. Uma calça preta, um casaco marrom, e um cachecol vermelho. O tempo parecia frio lá fora.
Me vesti com pressa, e calcei meus tênis. Coloquei a caixa enfeitada sob o braço com cuidado e desci as escadas.

Assim que abri a porta, uma corrente de ar frio atingiu meu rosto. Eu suspirei, fechando a porta atrás de mim, e encostando a cabeça na mesma.

Encarei sua casa. O jardim bem cuidado, já que sua mãe amava jardinagem. O carro da família na garagem. A janela fechada do seu quarto.

Desci os poucos degraus da varanda, e parei na calçada. A rua estava deserta, já ainda que era bem cedo.

Olhei novamente para a grande caixa sob meu braço. E tomei fôlego e coragem para atravessar a rua. Atravessei o jardim, parando em frente a sua porta. Levantei minha mão na altura do meu rosto, pronto para bater...

𝙷𝚎𝚊𝚝𝚑𝚎𝚛 - 𝙹𝚒𝚔𝚘𝚘𝚔;Onde histórias criam vida. Descubra agora