“SEU ARROZ”
Era fim de tarde e estava caindo uma tempestade lá fora. As janelas do quarto dele estavam fechadas, mas mesmo assim o som era alto. Seu pai tinha saído há algumas horas para pagar algumas contas, então a casa era só nossa. Não que isso fizesse alguma diferença quando nosso cronograma na sua casa era sempre assistir títulos desinteressantes na Netflix ou comer porcaria enquanto jogávamos Uno.
No dia anterior a gente até conseguiu subir na sua laje e você empinou pipa. Você tinha tirado a camisa por causa do calor. Lembro de me recostar no parapeito de tijolos e tentar desenhar o seu quintal gigantesco do meu ponto de vista. Grama alta, árvores retorcidas, pneus largados aqui e ali, uma pilha de tijolos perto do portão. Consegui até encontrar uma bola de futebol encardida em cima do telhado da garagem improvisada. Mas eu não estava com paciência pra aquilo e acabei riscando a folha com raiva depois de ter calculado mal a distância entre uma árvore e um dos muros. Tirei minha regata e me sentei no chão de concreto, as costas encostadas no plástico gelado da caixa d'água.
Você nunca foi de muitas palavras. Não comigo. Principalmente comigo. Mas eu gostava do seu silêncio mesmo assim. A maneira como às vezes passávamos horas a fio sem dizer nada quando estávamos juntos. No carro do seu pai, assistindo o céu de Bravado mudar de cor enquanto rodávamos pela cidade. As vezes em que tomávamos banho juntos, nossas mãos fazendo espuma no cabelo um do outro e a gente ficando duro involuntariamente em algum momento. Quando íamos pra alguma orla aleatória e vazia afastada da cidade, tentávamos segurar os girinos na água e deitávamos na areia depois de passar protetor solar.
Às vezes a gente só existia um com o outro e isso era bom.
Sua pipa estava muito alta, um pingo roxo rasgando o céu pra lá e pra cá. Tinham outras duas além da sua, provavelmente seus vizinhos aproveitando o sábado ensolarado. Foi depois de algum tempo que você me pediu para pegar o pote de cerol e a cola no andar de baixo.
Desci animado pela escada de madeira improvisada — você sempre disse que seu pai tinha preguiça de terminar os dois andares superiores da casa — e cacei o pote de vidro no meio das bugigangas empoeiradas daquele lugar. Tinha de tudo; TVs de tubo, bolas de leite murchas criando teias de aranha, cadeiras de balanço arrebentadas e até um par de Adidas rasgado num canto. O pote de vidro estava numa prateleira próxima à uma pilha de sacos de cimento. A cola foi mais difícil de encontrar, tinham muitas latas de tinta no chão e eu já nem lembrava qual era a que você tinha descrito. Talvez por isso que, das quatro latas, escolhi a mais escondida. Tinha uma aranha assustadoramente grande morta em cima dela. Puxei a tampa com força e quase vomitei com o cheiro.
Fiquei alguns segundos balançando a lata tentando entender o que era aquilo no meio do amarelo. Tinha absorvido quase toda tinta, então eu não fazia ideia da sua coloração real. Você me chamou lá de cima no mesmo momento em que consegui decifrar. Senti certo pavor fechando a lata. A próxima que escolhi tinha cola de verdade.
Quando subi de novo e te entreguei as coisas, reparei que minhas mãos tinham manchado de amarelo. O mesmo tom das paredes de fora da casa do primeiro andar, das quais você dizia detestar a cor. Eu não disse nada enquanto você sentava e espalhava a cola pela linha, um resquício de sorriso em meio a barba.
Seu pai pediu pizza de noite e a gente assistiu algum jogo de futebol do São Paulo no sofá da sala. Vocês ficaram bebendo até tarde e eu fiquei detestando cada berro que vocês soltavam quando alguma coisa acontecia na tela gigantesca. Eu disse que ia no banheiro e acabei escapando pro seu quarto. Deitei na sua cama e tentei pegar no sono. Você apareceu algum tempo depois, cambaleando e apagando logo que sua cabeça encostou no travesseiro.
A gente passou a maior parte do domingo só dormindo. Acordei mais cedo do que queria com meu celular dançando com algumas dezenas de mensagens. No dia anterior, tive que literalmente implorar para dormir na sua casa. Minha mãe não ligou muito porque o filho preferido dela era o Heitor. Era ao contrário com meu pai e ele só deixou depois que eu prometi que ajudaria ele a montar o quebra-cabeça redondo da Lua que ele estava há semanas tentando terminar. Respondi pra ele que eu estava bem e bloqueei o telefone, levantando.
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Mas que lugar maravilhoso para se morrer (um conto)
Proză scurtăCostas Reis Borges, Se somos tão diferentes, por que somos tão parecidos? Talvez esse livro me ajude a nos entender. .•°○ Em algum momento da sua adolescência, Hugo Lampes foi pedido em namoro pelo maior trombadinha da cidadezinha em que morava. Ten...