“QUANDO VOCÊ PERDE DE MIM NO VIDEOGAME”
Acordei exatamente à meia-noite. A primeira coisa que fiz depois de abrir os olhos foi suspirar quando percebi que ainda estava no meu quarto.
Coloquei meus chinelos e desci para a cozinha torcendo para não pisar em alguma tábua barulhenta e acordar alguém.
Tinham duas caixas de pizza sobre a mesa, mas eu já tinha me empanturrado demais há algumas horas enquanto minha família ria do programa do Silvio Santos na sala. A cada gargalhada, um olhar jogado pra mim para checar se eu estava me divertindo também. Eu sempre fingia que sim. Dei dois goles num copo d'água e derramei o resto na pia, subindo a escadaria de novo. Eu até conseguia fazer isso sem tocar no corrimão agora, se quisesse.
Estava fechando a porta do meu quarto o mais devagar possível quando reparei na silhueta atrás da cortina da sacada. Acho que achei que iria ser morto, e talvez minha família também, e talvez estivesse tudo bem. De qualquer forma, procurei a maçaneta atrás de mim enquanto o vulto se esgueirava para dentro do meu quarto. Tateou pela minha cama e só então subiu o olhar pra mim. Se eu não tivesse reconhecido o cheiro do seu desodorante, talvez até tivesse gritado.
Ou não.
— Costas? — Chamei.
Ele não soube o que dizer. Depois de titubear, ergueu as mãos num jóia silencioso. Soltei a respiração e o empurrei para a sacada.
— Você não devia deixar destrancada. — Ele apontou para a porta.
Andei até o parapeito. Era uma boa subida até ali.
— Sério? — O olhei incrédulo.
Três meses.
Três meses desde que eu não ouvia a voz dele ou as suas piadas horríveis e xenofóbicas sobre orientais. Três meses desde que bloqueei seu contato no WhatsApp, Instagram e Facebook. Três meses desde que eu tinha deixado de ir para a escola e ver seu rosto.
Apesar disso, ele parecia exatamente o mesmo. Ainda tinha os dois palmos de altura a mais que eu. Ainda vestia aquele jeans surrado que sempre usava para sair. O seu Adidas que ele nunca lavava, encardido nos mesmos lugares de sempre. Seu sabonete também não tinha mudado. Talvez sua barba estivesse um pouco mais espessa (não que desse pra reparar direito no escuro). Tudo parecia estar exatamente da maneira que eu lembrava antes de tentar esquecer.
Mas a luz opaca da lua cheia fazia algo reluzir em seu cotovelo.
— Você tá bem? — perguntei.
— Me ralei enquanto subia. — Ele escondeu o braço. Apontou para mim, logo em seguida. — Gostei das cicatrizes.
Mesmo que eu tentasse fazer que nem ele e esconder, seria impossível. Minha pele estava marcada por toda parte. Eu tinha sorte de ter ficado mal o bastante a ponto de poder concluir o ensino médio em casa. Não queria ganhar algum apelido agora que eu estava assim.
— E você, tá bem? — perguntou.
Meu peito apertou. Fazia muito tempo desde a última vez que o ouvi perguntando aquilo.
Era claro que eu não estava bem. Tinha ficado dois meses tomando banho com a ajuda do meu irmão porque não conseguia nem levantar o braço pra pegar a porra do sabonete. Se Costas tinha perdido as unhas, eu quase perdi meus dedos. Meu nariz tinha quebrado em um milhão de partes diferentes, segundo minha mãe, e eu não acreditei até conseguir ver o quanto ele estava torto no espelho depois de tirar todas aquelas talas. Meu cabelo não era o mesmo desde que o rasparam para costurar os rasgos na minha cabeça, e só Deus sabia o quanto eu detestava acordar e ter que recomeçar todos os dias.
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Mas que lugar maravilhoso para se morrer (um conto)
Kısa HikayeCostas Reis Borges, Se somos tão diferentes, por que somos tão parecidos? Talvez esse livro me ajude a nos entender. .•°○ Em algum momento da sua adolescência, Hugo Lampes foi pedido em namoro pelo maior trombadinha da cidadezinha em que morava. Ten...