Eu só precisava de uma vida. Uma vida já saciaria a minha sede. Apenas uma vida e aquela dor em meu peito cessaria.
Já era noite no reino de Raitron e as largas ruas não estavam mais tão iluminadas, o que facilitava o meu disfarce entre os raitronianos, povo esse que insistia em perambular pela cidade da coroa mesmo àquelas horas do dia. Por mais que caminhasse com cautela, percebi olhares encarando-me à esquerda, em frente a loja de arcos. Preferi mudar minha rota para a direita, antes que alguém me percebesse.
Entrei em uma viela muito familiar, ainda no distrito Dourado de Raitron, em sua região nobre. Além de apertada, a passagem era escura. Perfeito. Um local discreto que me proporcionaria, sem qualquer risco, a possibilidade de me livrar daquela dor.
O desconforto e a ansiedade já tiravam-me a paz e a sensatez. Sentia meu coração sendo apertado e comprimido a cada batida. Não podia mais tardar em fazê-lo.
Escorei-me na primeira casa que encontrei. A parede de pedra porosa e gelada já nem me incomodava pois meu corpo estava tão frio quanto ela. Apesar de aquela ser uma região considerada segura em Raitron, contaria com a sorte, ou melhor, com a benção de Trevold, para encontrar uma moradia desatenta.
Arrastando-me contra o sopro gelado que passava pela viela, fiz minha primeira tentativa, e ela falhou. A porta estava trancada.
Sem perder tempo, procurei a entrada da próxima casa: a porta estava destrancada. Minha prece tinha sido ouvida, mesmo em meio à minha falta de fé. Não imaginei que retornaria tão cedo àquela residência, muito menos com tais motivações. Lamentei pela família, mas não havia outra opção.
Por mais que o meu real desejo fosse destruí-la sem qualquer hesitação, empurrei a madeira com cuidado e entrei sorrateiramente.
Havia apenas uma iluminação naquele grande cômodo. Uma vela cuja chama tremia assustada pelo vento. Fechei a porta. A chama se acalmou.
Ali dentro, imerso naquela escuridão, pude ouvir o vento cantar uma melodia tenebrosa através da fresta embaixo da porta, como um prelúdio para a morte. Suspirei confiante de que não seria a minha.
A vela estava em uma pequena mesa. Ao lado da chama havia um jarro e cinco copos espalhados, sendo que um deles encontrava-se deitado sobre a mesa, com sua bebida derramada sobre a madeira, refletindo a tímida iluminação do cômodo.
Aproximei-me da luz e percebi que atrás da mesa havia um rapaz deitado em um tapete, de costas para o fogo. Os cabelos loiros brilhavam como se fossem parte da chama. Sua roupa revelava que ele não pretendia ter dormido ali, provavelmente surpreendido pelo efeito do vinho exagerado. Olhei para o outro lado, um pouco mais distante, e notei mais dois rapazes na mesma situação que o primeiro.
Ali estavam. Uma daquelas vidas saciaria a minha sede. Optei pelo primeiro que havia visto. Mesmo com os outros dois por perto, não teria problema algum, já que, do sono, este mal despertaria.
Toquei na perna do rapaz. Isso seria o suficiente. Seu corpo estava quente, assim como eu ansiava por estar. Era como se já sentisse a vida fluir novamente pelo meu corpo. Engano meu. Nada aconteceu, como há anos não ocorria. Assustei-me com o imprevisto.
Talvez, por conta de minha pele gélida, o rapaz se remexeu e resmungou algo:
— Quem está aí? O que você está... fazendo? — perguntou com dificuldade.
Afastei-me para o escuro quando percebi que ele começou a se levantar. Assustei-me ao esbarrar em um armário, mas logo em seguida ele tornou-se o meu apoio. Minhas dores pioraram com o susto. Talvez já fosse tarde demais. Por um infortúnio estaria tudo perdido.
— Você é idiota mesmo — o rapaz xingou baixo, olhando para um lado e depois para o outro. — Vou embora.
— Espera! Eu... — um dos outros dois rapazes também se levantou.
O terceiro acordou em seguida e os três caminharam com dificuldade, como se arrastassem um ao outro, até saírem da casa e fecharem a porta.
Por Trevold, ninguém havia me notado. Tive mais uma chance.
Segui para o corredor da casa, mesmo que pelo escuro. Por conta das dores, fui forçado a me escorar novamente pelas paredes, agora de madeira e não tão fria quanto às de pedra do lado de fora da casa. Encontrei duas portas, uma de frente para a outra. Escolhi a da direita, mas estava trancada. Tentei a da esquerda. Abriu.
Havia um rapaz dormindo em uma cama de solteiro, com madeira de boa qualidade. A janela estava aberta e a luz do luar tornava o cômodo azulado.
Sem poder esperar, caminhei depressa, quase jogando-me em cima da cama. Toquei sua pele e, dessa vez, pude sentir a vida fluir. Cheguei a ver seus olhos se arregalando de pavor e a boca se escancarando, como se um grito desesperador quisesse ser ouvido, mas nem mesmo eu ouvi. Suspirei sentindo meu fôlego renovado.
Já não havia mais dor. A sensação era de paz. De completude.
No mesmo instante o cadáver começou a feder, então tinha de ir embora dali sem que me vissem, afinal já tinha o que precisava. Eu só precisava de uma vida.
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Elementos da Guerra - A Maldição dos Kadronis
ФэнтезиNo continente de Bellavarth existiam oito reinos. Cada um havia sido abençoado com a dominação de um elemento, de acordo com seus ancestrais. Apesar desses presentes divinos, esses povos eram assolados, já há muitos séculos, por uma maldição. O ans...