Capítulo 2

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A família do sujeito, gananciosa, alvoroçou-se e foi um cerco em cima de mim. Criançada. Nunca tinha visto o homem. Como eu era idiota! Trouxeram o tal noivo á casa para eu o conhecer. Papai esperançado com a minha má impressão. Mas não tive nenhuma, nem boa, nem má.

O meu espirito estava longe das gentes, eu só queria a liberdade, a liberdade, poder sair, divertir-me, ser dona de mim. Eu me dizia, qual será a minha impressão? Se for má, não aceito. Não foi nenhuma, aceitei. Não recuei depois por capricho. Queria me casar. Quando eu soube
que se chamava Radagásio (foi o único meio que o par teve de distingui-o entre os outros homens) fiquei envergonhada.

O nome da família era Vianna. Tinha pena de perder o meu nome de família. Eu era Thereza Moura. Como sou morena, olhos castanhos, bem rasgados e luminosos, cabelos escuros, compridos, pele trigueira, fina, viva, ardente, ia bem, seria sempre a moura. Romantismo primeiro Radagásio me fez uma declaração de amor logo no dia do pedido.

Estávamos á janela da chácara, quando dois pombos (naquele tempo eu dizia pombinhos) se beijavam, Radagásio me disse com a sua voz soturna: —Nós faremos como eles... não quer? 

Oh! Dei uma gargalhada e fugi.

Nem assim desmanchei o casamento. No dia seguinte ao do pedido eu berrava pela chácara: -Vou me casar, vou me casar!! Para ser ouvida por um moço vizinho, que andou experimentando me namorar. 

Lili teria acordado?

Não ouço barulho... Aqui é a casa da ordem. A ordem por base, repete Radagásio. Eu continuo a tolice: ordem e progresso. De costume é a negra, a peste-negra, que traz a pequena ao terraço. Não perturbemos os costumes. A ordem por base. Sempre metódico Radagásio. Tudo
marcado, tudo regularizado. Tudo. Oh! Primeiro também que sacrifício. Antes nunca. Tenho horror deste homem! e que nojo oh! Quando nos casamos não era como hoje. Era
magro, bem vestido, e até dançava valsa, de repente começou a engordar, avolumou-se, tornou-se pesado e ficou mais escuro. Hoje é barrigudo, anda bamboleando, os olhos pequeninos, apertados, lacrimosos, o nariz espichado, sempre fungando, sempre a assoar-se, a pele preta, bigodinho de arame, meio chinês, cabeça de microcéfalo e bochechas caídas, eis o meu marido, Radagásio Vianna, secretario de banco, para onde entrou pela mão de papai, como empregado e foi fazendo aos empurrões a carreira. Mas que carreira vagarosa, carreira de lesma, quarenta
anos, ainda secretario. 

É um molusco o meu marido, os olhinhos de caranguejo ou de sapo? Anda por essesn pântanos. E estúpido até ali! Papai o empregou e sempre nos sustentou até a sua morte. Radagásio não tinha vintém e era incapaz de trabalhar e ganhar a vida. Mas
queria fartar-se na vida. Exigente, mandão, desfrutado e tirano. E o que mais desespera é ser um homem problemático. Não sabe nunca o que quer e ninguém conta com ele. É demais. Reagi logo e me veio um ódio, um ódio e um nojo. Agora é a prisão. Morre papai, morre
mamãe, veio a minha fortuna. Radagásio apossou-se de tudo.

É a lei, mas não é a honestidade. Foi passando tudo para o seu nome, quando tudo antes da morte de papai e mamãe vinha do meu dote. Ladrão! Até que afinal caiu a viração. 

Boa tarde, ventinho bom. Tudo se agita, tudo se exalta no meio do sol. Lá vão às nuvens
veleiras, dançam as palmeiras. A poeira exaltada que se levanta da cidade e sobe em trombas, vejo tudo mover-se, olha só o mar, que arrebentação na praia, agora sim,
encheram-se as velas do navio e lá se vai... Adeus e quando voltares aqui estarei prisioneira de Radagásio Vianna, o imbecil, o ladrão, o miserável. E toda a gente diz: ''bella casa, não há vivenda igual''. Mas a minha alma não se contenta neste jardim, neste parque, que desce morro
abaixo, neste terraço sobre a cidade e sobre a Bahia, ouvindo o gemido cacete destas doze palmeiras, cercada destes morros, mirando aquela igrejinha pasmada e me afundando neste silencio sacudido pelo barulho da cidade, do mar e do vento. 

Oh! A minha alma busca o infinito. Primeiro, mas o que é isto, o infinito? Não sei. Escapou. Quero outra cousa, que não é o que tenho. Quero liberdade. Para que? Não sei.
Afinal não quero nada. Não sei o que fazer de mim. Não tenho quase família. Se ao menos eu tivesse um irmão, um verdadeiro irmão a quem entregar esta minha alma! Nada. Marido, um ódio, um nojo.

A Viagem MaravilhosaOnde histórias criam vida. Descubra agora