Capítulo 3

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A menina, meu amor, tão pequenina, três anos, não me entende. Entregue á ama, a tal peste-negra, que veio da fazenda, imposta pela velha tia, que nos casou, e Radagásio, seu irmão de leite, só nela confia. Pôde ser que sejam irmãos de outra maneira, é o mesmo espirito, o mesmo método, a mesma sovinice, a mesma ganância. Sim, são irmãos de sangue. Sangue e leite, fraternidade completa dos líquidos. E se parecem, volumes iguais, expressões, olhos, apenas a negra tem boca escancarada de tubarão e Radagásio boca apertada de Jaboti. Oh! Eu juro que esse demônio me espia. Ordem do meu marido, sempre suspeitoso. Idiota. Desconfiado de tudo, sem um amigo, desconfiado de mim, dos micróbios, ufa! Absolutista.

Medo de moléstia, medo dos bichos. Quando vai á caça na fazenda dos primos leva injeções
contra cobras, remédios contra mosquitos, contra carrapatos, quinino, filtro d'água, mosquiteiro. Ridículo, ridículo. Um demônio destes assim custa a morrer. 

Malvado! Oh! A caçada! Lá vai ele, grosso, bambo, pelo campo aberto, dentro do automóvel, roupa de lã, chapéu e botas impermeáveis, sobretudo, guarda-pó, todos os agasalhos, todas as armas, todos os aparelhos, automóvel, cavalo, cachorro, camarada para carregar a espingarda, fazer pontaria, e o senhor Radagásio então atira. E que medo de vaca!... Ridículo, ridículo!... Oh! Não sei que fazer de mim, não gosto de festas, não vou a bailes, não janto fora. Para que? Tenho vergonha de Radagásio. Humilhação. Todos o acham estúpido, fogem dele. 

É o cacete, o homem falador, a repetição. Repete tudo, miolo mole. Caem todos sobre mim, com ares de pena ou olhos de conquista. Ah! Não! Nem comiseração, nem pasto para os outros. Fico aqui, leio, olho, torno a ler, torno a olhar, brinco com Lili, passeio de automóvel, vou às vezes á igreja. Triste vida, eu bem sei. Mas o resto é também vazio. Tenho tédio de tudo. Ah! Desapareceu o navio...

Fumaça forte atrás das últimas ilhas da barra. São vapores que chegam. Que vêm fazer? Porque se mentem na prisão e deixam o mar livre? Mas voltarão, tornarão á liberdade... Tudo está alegre no ar, como cheira este jasmim! Vale a pena transformar isto? Para que?... E, transfigurada, bateu palmas á filha, que surgia á porta da casa.
— Oh! A Lili da sua mamãe! Cheirosa! Estava bom o banho?

O que Lili queria era correr, ansiosa de movimento. Desceu rápida a escada, que levava ao jardim. Thereza gritou que subisse e Lili voltou, esgueirando-se, para não ser apanhada pela mãe. Foi uma correria endiabrada das duas.

Thereza, ágil, sofrera por qualquer agitação, atirava com segurança as longas e finas pernas para adiante. Corria, corria, aspirava o ar, veloz, mas retinha-se para a filha ter a ilusão de correr melhor. Corriam por entre os canteiros, machucavam as pedras, que estalavam, gritavam e os bichos entravam na algazarra com o vento e o farfalhar das palmeiras. Do alto da entrada da casa a preta espiava abobalhada. Viu-lhe um surdo rancor e
logo resmungou:
— Lili está que não pode mais de suada. Deixa ela quieta, sinhá.
A menina acovardou-se e parou instantânea. Thereza irritou-se.
— Qual suada. Corre Lili. Mamãe vai te pegar...
Lili pregou uns olhos compridos na negra e não se moveu. Thereza segurou-a pela mãozinha e a levou, dominada, pelo terraço, seguindo por debaixo do caramanchão do lado esquerdo do pátio para o interior do terreiro. A negra veio atrás. Quando a pequena viu a passarada nos
viveiros, á margem do caminho, soltou a mão de Thereza e atirou-se de boquinha aberta e mãos espalmadas sobre o arame da vasta gaiola para ver melhor e apanhar os pássaros. 

Dentro do viveiro as aves arremessavam-se ansiosas de um lado para outro, algumas pousavam instantâneas nos poleiros e logo se precipitavam sobre a grade oposta, fugindo às mãos gigantescas de Lili. Corpos azules, corpos verdes, arroja ando no espaço, azas inflamadas pelo sol, pios ardentes, gargalhadas de Lili e não muito longe a gritaria dos cães e ps berros roufenhos dos perus. Thereza, exaltada, teve ímpetos de abrir o viveiro, soltar os pássaros.            A negra resmungou:                                                                                                                                                          — Passarinho de gaiola solto, não sabe o que fazer, morre logo...

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