Thereza parará de comer e entristecera. Olhava o monstro Radagásio, espesso, tenebroso, sem um clarão nos olhos, a mastigar palavras e comidas. Mirava a sua prisão rica e miserável. O silêncio era mesquinho, feito de infâmias, sacrifícios, ódios. Ela aspirava á solidão com a
liberdade. Exaltação. Veio a triste compota de Radagásio.
— Faça chá de camomila... Não. Anis estreitado. É melhor para os gazes.O tédio excitava a irritação de Thereza. Os seus lábios gelados tremiam na xícara de café. Subitamente ela se espraiou num grande, bom, maternal sorriso, que beneficiava todo o corpo.
— Vem, meu bem, meu anjo.
Correndo para o seu lado um menino pálido, vibrante, lépido, atirava-se nos seus braços.
— Porque vieste tão tarde, Jujú?
O pequeno respondia apenas, mirando-a com uma satisfação ardente das suas entranhas infantis e eternas.
— Queres sorvete?
Jujú sorria. Thereza mandou servi-o. Radagásio arrotava exasperado.
— Agora tem você esta mania. Esta criança de gente que não conhecemos, gentinha de cacaracá... e vizinhos, o que eu detesto.
— Jujú é meu amiguinho do coração. Nós nos entendemos. Não é, Jujú? Deixa falar. Teté te quer muito, muito.
Radagásio levantou-se. A cólera tornava-lhe amarelado o couro castanho da cara.
— Mau! Exclamou sombrio Jujú ao homem, que desaparecera.
E, ávido, agarrou o pescoço de Thereza, beijando-a com frenesi, faminto.
— Não gosto destes modos, Jujú. Fica calmo, meu benzinho. Toma o teu sorvete e vamos para o jardim.
Uma grande paz arejou repentinamente a sala.Quando, fora, a surpresa vasta e luminosa do noturno marítimo os tomou, Jujú subitamente febril conchegou-se á Thereza. O pavor extático era excessivo. Luzes que pairavam em cima, luzes que por terra se estendiam maliciosa, que subiam nas massas negras, que dançavam na
água, corriam no espaço nu ou repleto da claridade, sons que trombeteavam, que murmuravam no escuro ou espumavam na Bahia. Delírio. E os perfumes que desabrochavam de todos os cantos do jardim. Intoxicação.
— Senta aqui, Jujú... Vou te contar uma história bonita.
— Se é bonita, é triste...
E o menino esperou a narrativa. Thereza repetiu a infatigável história das fadas, das princesas amorosas, dos papões, dos encantamentos, das desditas e das esperanças.
— E o príncipe entrou, os olhos de ouro, o sorriso brilhante...
— Quem era o príncipe? Philippe?
— Que Philippe?
— Aquele moço que vai lá em casa... e gosta muito de mim. Não conhece Philippe? Que pena, primeiro vamos lá em casa, Teté. Philippe está lá.
— Bobinho, que me importa o teu Philippe. Ouve a história... Então o príncipe entrou e viu a princesa adormecida...
— Teté, as estrelas só dormem de dia?
O pequeno assustou-se ouvindo a voz de Radagásio para Thereza:
— Você fica como sempre, pois, eu vou andar a pé para queimar o ácido úrico.O corpo pesado desceu aos trancos as escadas de pedra, e o ar deslocado agitou o rasteiro e miúdo pavimento verde do jardim alarmado. Thereza agasalhou o menino, que emigrou para o alto reluzente. Adormecia e sonhava.
As estrelas são princesas. Os olhos brilham e espiam aqui em baixo... Espio para cima. Elias estão vendo os meus olhos, como os do gato, ali na escuridão, que são vaga-lumes e vêm pousar nos cabelos de Thereza e que se enrolam nas árvores e me amarram no alto da palmeira, onde o vento dança e me faz dançar e me sacode no mar e nado, nado, e Thereza me tira da água e me aquece tão gostoso e me beija melhor que mamãe, que está lá em casa ouvindo Philippe, e todos calados, quando passa o anjo e me leva para o céu para brincar com as estrelas... princesas que só dormem de dia... E o príncipe entrou... Conta Teté... Philippe entrou...Thereza exaltava-se com essas emanações do pensamento rudimentar, que se dilatava em imagens. Librava-se também no sonho. Noturno transcendente. Não havia
nem o real, nem o irreal. O universo desmaterializa-se, escapa-se em fugas espirituais, torna a condensar-se e fragmenta-se nas aparições sensíveis.Todos os objetos vivem a sua incomensurável vida molecular. As pedras, as árvores, o mar, as estrelas, os corpos humanos, os grandes e imperceptíveis fragmentos da matéria, todos
infatigavelmente se consomem e se transformam na eternidade da duração, independentes do espirito que deles se apossa e os transfigura. A mesma força dinâmica move os seres, em que se decompõe o Todo.Thereza era arrastada inconsciente no movimento misterioso e irreprimível. O menino adormecia nas fronteiras do irreal. Thereza absorveu, no colo, o corpo da criança, como uma
concha agasalha maternalmente um molusco.