Dádiva Cruel

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Joana levantou da cama decidida a tomar iniciativa. A estratégia de levar um dia após o outro serviu apenas para pilhar o peso sobre seus ombros. Abriu a janela do quarto enquanto ainda bocejava. A luz vespertina do Sol costumava motivar a garota, mas, naquela manhã, não surtiu nenhum efeito.

Vinha treinando seu discurso a dias e torcia para que sua mãe fosse tão compreensiva quanto o espelho do seu quarto.

Na cozinha, Sonia lavava a louça com displicência, algo parecia incomodá-la, talvez alguma notícia no jornal ou mesmo o tédio do dia a dia. Apesar da feição pouco convidativa da mãe, Joana respirou fundo e agiu.

— Mãe, preciso falar com você.

Sonia se virou sacudindo as mãos molhadas.

— Oi filha, pode falar.

— Sei que a gente já teve essa conversa antes, mas eu não to bem, acho que eu prec...

— Não é aquele papo de novo não, né? — Interrompeu, irritada.

— Mas mãe, eu não to aguentando mais, você tem q...

— Eu já falei, a gente não tem dinheiro pra ficar gastando com frescura.

— Frescura? Cuidar da minha saúde mental é frescura?

— Não vamos mais falar disso, entendeu? Você tem que parar com essas coisas. Tá parecendo a sua tia, é isso que você quer? Ser a ovelha negra da família?

Era possível ver as veias saltadas no pescoço de Joana, como se, além de sangue, elas acumulassem tudo que ela gostaria de dizer. Engoliu as palavras.

— Você precisa de Deus, filha. Quando vai perceber isso?

Foi a gota d'água, a jovem franziu as sobrancelhas e retrucou.

— Prefiro ser a ovelha negra do que ser igual a você. — Saiu da cozinha em direção ao quarto, com o coração ainda borbulhando.

Sonia precisou se apoiar na pia para absorver aquelas palavras que atingiram em cheio seu ponto fraco de mãe. Viu Marcelo entrar na cozinha perguntando o que havia acontecido ali e desabou nos braços do marido, aos prantos.

No quarto, Joana repousou sobre a cama. A primeira coisa que viu ao se deitar foi o porta-retrato em sua estante, a foto ostentava coisas na qual ela não tinha a tempos, um sorriso e uma amizade verdadeira. Um misto de sentimentos a atingiu. Por um lado, relembrou sua solidão e tristeza, por outro, teve esperança de que pudesse voltar a ser feliz.

Foi até a foto e tocou a moldura, seus olhos marejados a impediram de ver com clareza.

— Sinto sua falta, amiga. — Lamentou, enquanto deitava o porta-retrato.

Joana tinha 17 anos e logo se formaria no ensino médio. Podia se imaginar no futuro, repleta de amargura, recordando de como o dom destruiu sua vida. Joana usava a palavra "dom" pejorativamente, pois para ela, ver e ouvir espíritos estava mais para loucura do que um poder divino. Passou a infância tentando descobrir se tudo era realidade ou piração da sua cabeça, até se dar conta de que já havia sido afetada demais para que isso importasse.

Perdeu as contas de quantas vezes teve que se conter durante as aulas na escola quando avistava pessoas na qual sabia que ninguém mais poderia ver, ou quando tinha sua paz interrompida no metrô por estranhos desfigurados que imploravam por ajuda. Todavia, nenhuma dessas figuras tiravam tanto sua paz quanto a solidão.

Ela sempre andou distante da fé religiosa, o que tornava impossível um diálogo com seus pais fanáticos. Com Bianca, sua irmã mais velha, também existiam algumas divergências sobre o assunto, já que ela também havia sido "abençoada" com esse dom, mas ao contrário da irmã cética, havia achado o respostas para tudo isso na fé.

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