A Aposta

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A proposta me fez gelar. Não sei se foi o jeito que ele disse meu nome. De uma maneira estranhamente familiar. Seria mesmo o demônio diante de mim?

Enfrentei o olhar de meu interlocutor, analisando-o atentamente. 

Não estávamos mais na Idade Média. Sem sinal de chifres ou asas de morcego... , refleti. 

Deus está morto, bradara o filósofo Nietzsche, há quase cem anos atrás. Assim como Deus, demônios haviam morrido desde então, e se estivessem vivos não andariam em cidades modernas e cheias de luzes. O diabo, se fosse real, só apareceria em lugares escuros e isolados.

Por fim, sorri confiante, concluindo ser a proposta uma brincadeira.

— Aposto minha alma. Esta noite capturarei o Amor em uma foto.

O senhor ergueu-se e estendeu-me a mão. Eu a apertei, selando nosso pacto. Em seguida, ele deu meia volta e afastou-se, desaparecendo entre a multidão.

Por um instante, fiquei parado. Pisquei, meio aturdido, perguntando-me se havia realmente apostado minha alma em uma disputa sem sentido. Vaidade e orgulho eram os dois maiores pecados dos homens, e eu acabara de pisar com os dois pés naquele pântano.

No entanto, logo desprezei a ideia e deixei escapar uma gargalhada.

— Por que está rindo? — alguém indagou atrás de mim.

Virei-me. Vi que era um menino, sentado com as costas apoiadas na parede de um prédio. Devia ter no máximo doze anos, magro, cabelos arrepiados, pele morena, vestindo roupas esfarrapadas. Moradores de cidade grande costumam ignorar crianças de rua como se fizesse parte da paisagem. Mas, por algum motivo, gostei dele.

— Preciso fotografar o Amor. Ou então, perderei minha alma para o demônio... — expliquei, sem levar a sério minhas palavras.

O garoto franziu a testa, coçou a cabeça e, aproximando-se, encarou-me com olhos preocupados.

— Como você se meteu nessa enrascada? — indagou, parecendo acreditar na brincadeira.

Dei de ombros e sorri. Fingiria que a aposta era verdadeira e iria me divertir.

Mostrando-lhe minha máquina fotográfica ultramoderna, tranquilizei-o:

— Essa é uma C 23S20000. Esta noite o Amor estará dentro dela.

O garoto examinou a câmera.

— Posso te ajudar em troca de alguns trocados... — sugeriu com um olhar esperançoso.

Pensei por um momento. Seria interessante ter alguém com quem compartilhar a estranha aventura. Para quem mais eu poderia contar algo deste tipo? Não para minha família que estava longe, morando em uma cidade perdida no interior, e nem mesmo para meus colegas de faculdade. Eu morava sozinho e meu único amigo naquela cidade era uma gato de nome Félix, que não se emocionaria ao me ouvir.

Além disso, a aparência do garoto me dava um pouco de pena. Sem pensar, ergui a câmera e tirei uma foto dele. Olhei o visor. A imagem me confirmou o que antes meus olhos haviam visto. Era apenas mais uma criança abandonada na cidade grande, como milhares de outras. Magras e anônimas. Suas costelas marcavam a camiseta fina e os olhos ardiam, brilhantes. Provavelmente não comia há um tempo.

— Está bem — afinal concordei, fazendo-lhe um sinal para que me acompanhasse. — Vamos! Primeiro, tomaremos um lanche. Depois, passaremos a noite em busca do Amor.

***

Discretamente, escondido atrás da árvore de uma esquina junto ao garoto, eu tirava fotos.

Um pouco adiante, mulheres cruzavam as calçadas na parte baixa da cidade. Era um lugar cheio de bares e boates de todos os tipos, onde luzes de neon brilhavam fracas, prometendo prazeres secretos aos que passavam. Em uma destas boates piscava o letreiro: "Amor Proibido". Fora esse que me dera a ideia de parar por ali.

De súbito, uma das mulheres abandonou a janela de um carro parado ao lado dela e se voltou para mim com um olhar irritado.

— O que está fazendo, rapaz? —  gritou, enquanto se aproximava.

Abaixei instantaneamente a câmera, pego em flagrante.

— É um concurso... — contei, meio sem graça. — Preciso fotografar o Amor.

Mais duas mulheres chegaram perto, atraídas pelo grito da primeira.

— Fotografar o Amor? — as três me cercaram, entreolhando-se.

— Você não vai encontrar o amor por aqui... — uma delas disse, com uma certa tristeza na voz.

Pensei um pouco. Erguendo a câmera, olhei as fotos que havia tirado. Tomara cuidado para não identificá-las e evitara os rostos. Vi seios fartos, curvas voluptuosas, pernas a mostra em microssaias. O neon iluminava os corpos, deixando-os violetas, sedutores.

— Este é um tipo de amor... — justifiquei-me, mostrando a melhor das fotos. Estava bem bonita. A mulher de cabelos morenos e rosto encoberto poderia ser a deusa Vênus, perdida na cidade.

— Amei! — Ela bateu palmas e deu um pulinho alegre.

Eu lhe mandei a foto pelo Bluetooth de minha super câmera. Ela me deu um beijo na bochecha em troca. Depois, afagou-me a cabeça.

— Que tal entrarmos na "Amor Proibido"? — sugeriu com uma piscadela, mostrando a porta da boate atrás de nós.

Já iria concordar, esquecendo completamente de minha alma a perigo. Entretanto, senti uma mão puxar minha roupa por trás. Olhei para lá. Era o garoto.

— Precisamos continuar... — ele disse baixinho, fitando-me com um olhar de reprovação. — Sua alma ainda está em risco.

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