Pegamos o metrô e voltamos à avenida. Era manhã e a luz do sol trazia promessas de um belo dia.
Olhei para o banco, esperando que a aposta não passasse de uma brincadeira. Torcia para nunca mais ver o velho senhor de sobrancelhas grossas.
Um tremor percorreu o meu corpo. Infelizmente, lá estava ele sentado, me esperando. Sua silhueta se recortava contra o painel de vidro de um prédio ultramoderno.
Esforcei-me para reprimir o medo nos recantos profundos do inconsciente.
Deuses, demônios e anjos eram superstições muito antigas, seres de outras épocas. Estavam todos mortos. Agora, os homens caminhavam sozinhos em um mundo sem sentido algum. Não precisávamos mais deles!
Murmurando esses pensamentos confortadores para mim mesmo, aproximei-me. Ele virou-se e sorriu ao me ver. Lutei para não fazer o sinal da cruz.
Cheguei perto e sentei-me ao seu lado.
— Deixe-me ver... — Ele estendeu a mão para a câmera.
Eu estava gelado. De repente, a aposta me parecia verdadeira. Os pelos do meu corpo se eriçavam como se eu estivesse diante de um perigo horrível.
Devagar, ele clicava no botão que fazia as imagens se adiantarem.
— Agora as fotos estão coloridas — observou, erguendo uma sobrancelha em elogio. — Você quase conseguiu nesta! — Por um momento, parou na imagem da prostituta que debruçava-se na janela do carro. Contudo, depois meneou a cabeça em negativa e continuou: — Mas não era esse tipo de amor que pedi...
Respondi com um resmungo contrariado.
Outras imagens cruzaram o visor. Ele parou na foto de Belle. Era a mais bonita delas. Rosto avermelhado pelo riso, olhos grandes e luminosos fitando um ponto ao alto.
— É a imagem da beleza. Mas não é o amor... — Ele meneou a cabeça, pensativo. Em seguida, me encarou com o cenho franzido. — Só trouxe isso?
Senti meu peito afundar. Aquela foto de Belle era minha esperança. Era o mais próximo do Amor que eu poderia chegar.
— Sim... — murmurei, cravando nele olhos aflitos. — É verdade aquela coisa sobre minha alma?
— É claro — ele assentiu, sério. — Pensou que não era?
Eu baixei os olhos e encolhi os ombros.
— Estamos nos tempos pós modernos... Ninguém acredita mais em Deus! E muito menos no demônio.
— Sim! — Ele estreitou os lábios em um sorriso de ironia. — Isso facilita muito meu trabalho!
Em seguida, se levantou e estendeu a mão para mim.
— Vamos! Está na hora.
Eu o encarei, surpreso e apavorado. Seus cabelos brancos haviam se enegrecido e os olhos, antes calmos e pacíficos, eram agora dois poços de lava ardente. Tentei resistir, mas foi como se uma força invisível me erguesse.
— O que vai acontecer? — Meus lábios tremiam ao indagarem. Meu instinto me dizia que eu estava perdido.
— Daqui a pouco te encontrarão aqui caído. Mais um anônimo que morre na cidade. Overdose de drogas, dirão.
— Mas sou muto jovem! — protestei.
O demônio se adiantou, ainda com a mão estendida. Eu arregalava os olhos e continuava a tremer.
— Estou apaixonado! — berrei, desesperado.
Por um segundo, ele hesitou e pareceu pensar.
— É sempre a mesma conversa... — Por fim, bufou, impaciente, e chegou mais perto.
De repente, o garoto, como sempre esquecido, pulou entre nós.
— Você ainda não olhou a última foto! — bradou com as mãos na cintura.
Bufando de novo, o demônio inclinou-se, pegou a câmera deixada no banco e olhou para o visor.
Subitamente, abriu a boca e estacou paralisado. A seguir, transformando-se em um senhor idoso, sentou-se.
— Você ganhou... — O escutei sussurrar.
A curiosidade foi mais forte do que o medo. Devagar, me aproximei e resgatei minha câmera do colo dele.
Olhei a imagem que ele vira.
Era a foto que Belle tirara de mim enquanto eu a admirava, fascinado. Meu rosto estava transfigurado; eu mesmo mal podia me reconhecer. Os lábios, entreabertos mostravam que eu quisera dizer o que sentia por ela e não conseguira. Os olhos queimavam em um misto de desejo e angústia, brilhando intensamente.
O garoto se debruçou ao meu lado.
— Posso ver o Amor em seus olhos... — Ele apontou a imagem e sorriu.
Aliviado, mas aturdido, voltei-me para ele.
— Quem é você? — perguntei pela primeira vez. Não tivera a curiosidade nem ao menos de saber o seu nome. Garotos de rua eram deixados para trás por todos e não despertavam um segundo olhar.
— Michael.
Ele riu ao me ver abrir os olhos de espanto. Depois, inclinou-se sobre o demônio-senhor-idoso e deu-lhe a mão, ajudando-o a se erguer.
Das escadas do metrô e dos ônibus as pessoas surgiam, lotando as calçadas em direção ao trabalho. Sem despedidas, Michael começou a se afastar de mãos dadas com o demônio. Eram apenas um garoto e um senhor de idade em meio à multidão. Em breve desapareceriam, perdidos na grande cidade.
— Esperem! — gritei e, jogando-me diante deles, tirei uma foto.
Aquela seria a prova definitiva da existência de anjos e demônios. Fitei o visor. Apenas pedestres apressados estavam ali.
Ergui a cabeça e olhei para os lados.
Nem sinal de Michael - assim como Deus – o nome do anjo. E nada do demônio.
Ninguém jamais acreditaria na minha história. Suspirei, dando de ombros. Contudo, em meu rosto, um sorriso brilhava.
Eu agora conhecia o Amor.
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Instante de Amor
RomanceUm conto. VENCEDOR DO DESAFIO 21, de @RomancesLP, o perfil oficial do Wattpad para romances em língua portuguesa. O fotógrafo Frederick caminha pela avenida de uma grande cidade. Subitamente, um estranho senhor idoso lhe propõe uma aposta. Trazer-l...