Confesso que não lembro exatamente o dia no qual meu pelotão desembarcou na Rússia. Talvez seja pelo esforço que minha mente faz para esquecer aqueles dias. Os dias em que visitei o inferno. Muitos pensam que o inferno está repleto de chamas, isso porque nunca conheceram o verdadeiro frio. O fogo devora rapidamente, em segundos. Mas o frio, o frio consome lentamente, por horas, semanas.
Marchávamos em direção a Stalingrado. Os russos concentraram suas forças para combater a Luftwaffe alemã no ar, então, os grupos enfrentados por nós em solo estavam em número reduzido, possibilitando uma fácil vitória. Entretanto, com a vitória não vinha tranquilidade, e sim aflição, o tormento causado pelo inverno. Matávamos homens e mais homens, andamos por dias sem encontrar abrigo. As casas avistadas no caminho haviam sido recentemente incendiadas, assim como plantações, estas, antes mesmo de congelarem, foram destruídas pelo fogo. Não víamos gado, apenas celeiros e galinheiros vazios, cinzas e paredes manchadas, um tapete branco estendido por todo solo, morbidez.
A fome e nenhum lugar para dormir apenas se aliaram ao frio. Frio esse que ainda dói em minhas entranhas. Não estávamos sendo derrotados por homens, mas por algo que não podíamos combater. Lembro de por diversas vezes, ouvir soldados alemães xingarem os Russos por repetirem a tática que vencera Napoleão e os franceses. No entanto, não me recordo de um só momento no qual os ouvi criticando a péssima decisão de seu líder, não que isso me surpreendesse, tal cena seria semelhante a padres questionando as leis de Deus. Talvez essa comparação pareça cômica e até exagerada, mas eu sei bem o quanto é verdadeira. Pois, em batalha, cada tiro alemão soava como uma súplica, uma veneração, submissão. Uma reza para o divino Fuhrer.
O estoque de comida em pouco tempo chegaria ao fim, e era preciso tomar alguma atitude, então, decidiu-se separar um grupo com onze pessoas para ir à frente do pelotão averiguar o terreno. Entre elas, estávamos eu, meu primo, e mais três italianos. Os outros seis homens, eram todos alemães. Saímos ao amanhecer, andando devagar e cautelosamente, tanto pela neve que cobria-nos os pés, como também por recearmos um confronto direto com o inimigo. Avançamos lentamente, recolhendo tudo o que parecia-nos útil, passamos por cidades abandonadas e lagos congelados. Do alto de uma colina, avistava-se uma extensa paisagem alva. Se o escuro amedronta por ser sombrio e misterioso, aquele melancólico e mórbido mar branco que preenchia todo o solo, teto das casas e topo das árvores, de igual forma horrorizava.
Segundo Schopenhauer, "o destino embaralha as cartas, e nós jogamos." Pergunto-me quais outras cartas eu teria em minhas mãos na quinta noite após me separar com o grupo do pelotão principal. Na verdade, pela forma como os fatos sucederam, talvez nem houvesse outras cartas, apenas uma. Uma única jogada. Um único caminho.
Recordo-me de vestir, naquela gélida noite, além do uniforme, dois casacos grossos, ainda assim, incapazes de evitar constantes calafrios provocados pelo vento. Os homens que compunham o grupo dos onze designados a ir à frente, estavam de tal forma revoltados com a dita por eles, covardia russa, que exterminaram o estoque de bebida alcoólica. Os alemães levaram alguns galões de cerveja e Schnapps para comemorar a vitória em Stalingrado. Entretanto, naquela noite, não bebiam em celebração, apenas queriam distrair o ódio que sentiam.
Afastado deles, encontrava-me pensativo, atormentado por perguntas que questionavam pelo quê e por quem eu lutava. Quantos homens foram mortos por mim? Tantos pais, quantos filhos? Maridos cujas esposas passariam dias aguardando a volta até perderem as esperanças.
Antes da guerra, ocupava-me como pintor. Reproduzia obras vívidas, geralmente impressionistas, inspiradas em Monet. Ficava fascinado com a união de diversas cores, formando as mais lindas paisagens. Se naquela noite me dessem uma tela, somente avistaria na aquarela o profundo escarlate, ideal para representar as tão macabras cenas que se passavam em minha mente. Aliás, o que seria eu, além de um pincel a riscar de rubro o alvo?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Lembranças de uma guerra (por Saulo Guilherme)
Historical FictionNo ápice da segunda grande guerra soldados são enviados a Rússia com uma missão capaz de definir os rumos do conflito. O ambiente hostil que encontram provoca grande tormento os deixando as margens da insanidade. Um encontro inesperado faz os milita...