Lembranças de uma guerra (parte 2)

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O barulho ensurdecedor espalhou-se pela floresta. Percebi que meu braço já não se encontrava estendido, alertando a escassez de minhas forças. Sem obter êxito, tentei me movimentar. Temia abrir os olhos, e enquanto estranhava à ausência do sangue a escorrer, lembrei da sensação que tive um pouco antes de atirar: Um toque, ágil e brutal, no mesmo membro que segurava o revólver. Amargurado como estava, imaginei ter sido o último impulso de minha alma, até a plena escuridão consumi-la. Ou então, à tentativa de um ser celestial em impedir a fatalidade. Não tive muito tempo para suposições, pois de repente, senti a pequena garota mexer-se.  Instantânea e instintivamente, abri os olhos. A visão embaçada mostrou-me a floresta de coníferas, a neve ocultando todo o terreno, os dourados cabelos da garota, e a silhueta de seis soldados a nossa frente. No céu, não encontrava-se a claridade da lua, talvez, em um atotipicamente humano de cobrir o rosto com um travesseiro evitando assistir à uma cena horrenda, ela escondera-se por trás das nuvens.  Quando notei que a garota apertava firmemente meu braço, um dos soldados, à princípio irreconhecido devido a momentânea e leve cegueira, aproximou-se dizendo - Estava aí esse tempo todo, divertindo-se com uma vadia russa? Vamos, não seja egoísta. Deixe-nos aproveitar também! - Os homens manifestaram-se aprovando a ideia, e eu, enfim enxergando, percebi que aquele a minha frete, era, na verdade, meu primo.

 - Não diga isso! Ela é apenas uma garota. A encontrei prestes a morrer, está faminta e perdeu sua família. Podemos ajudá-la. - Respondi enquanto levantava, cambaleando, ainda um pouco desorientado. Olhei a menina e percebi um extenso corte em sua face, próximo à orelha, ensanguentado. Aquela marca acusava a mínima proximidade que cheguei de assassina-la.

- Para mim, é só uma russa imunda. E se perdeu a família, devemos comemorar a morte destes covardes comunistas. Agora, afaste-se!  

Eu mal conseguia permanecer em pé, era incapaz de enfrentar seis soldados armados. O cheiro do álcool exalado pelos homens misturava-se com o das árvores. Somente a expressão de medo e as lágrimas da menina me sustentavam. - Nós crescemos juntos, você é meu primo, meu amigo, - a voz saíra como súplica, - estão todos bêbados, mas você é melhor que isso, - olhava fixamente em seus olhos, - muito melhor, eu sei. - As palavras soavam quase inaudíveis, o corpo já não aguentava continuar erguido, - por favor, por favor, não façam algo tão desumano!

O vento gelado tocava-me o rosto. A menina, entrelaçada em meu braço, pálida como o chão em que pisávamos, clamava silenciosamente por proteção. No céu, contava-se as estrelas, telespectadoras atentas e ansiosas a ver o desfecho da história, certamente, almejando um final feliz.

- E onde está a humanidade? - A voz dele brandou forte, assustando até os próprios companheiros, - tínhamos família, uma casa, cama, a guerra nos levou tudo. Tínhamos uma identidade, porra! Agora somos apenas peças em um jogo de tabuleiro. Números, mandados à matar uns aos outros, enquanto os poderosos estão sentados na merda de suas cadeiras, divertindo-se com nossa desgraça. Então, eu lhe respondo, onde está a humanidade? Não a encontrará aqui.

   Ele avançou em minha direção, e eu, imediatamente destravei a arma. Não pretendia mata-lo, ou a mim, mas aquela que tinha o sofrimento como sua sina. Entretanto, antes de qualquer movimento brusco, soou-se um barulho, e senti uma dilacerante dor no ombro. A visão ficou novamente embaçada, e sem forças, soltei a arma. Ouvi o agudo grito da menina, e em seguida, um segundo tiro. A mesma dor dilacerante atingiu-me a barriga, e outra vez, tudo escureceu.   Quando enfim abri os olhos, minha maior surpresa foi estar vivo. Não esperava acordar em algum paraíso, contudo, frustrei-me ao perceber que me encontrava no mesmo inferno glacial. Ainda deitado, olhei em volta, nenhum sinal da menina ou dos soldados, somente neve e árvores. Com certa dificuldade, sentei-me encostado na conífera, exatamente o lugar no qual eu tentara tirar a vida da pequena garota. A minha frente, duas manchas vermelhas se destacavam na brancura do terreno. Verifiquei os lugares onde as balas me acertaram, e deduzi que o frio do solo ajudara a estancar as feridas.   Deixado para morrer, sozinho e sangrando, tinha dúvidas se acordar teria um propósito ou seria apenas a continuação da punição. Fui apresentado ao caos, vi homens bons serem levados à loucura, e me perguntava se também era um desses, cuja lucidez se esvaíra por completa da mente. A vida deixa de ser uma dádiva quando o sofrimento torna-se constante. Na verdade, eu já estava morto. Sem perspectivas, sem sonhos ou propósitos, vagando meramente como um telespectador da ruína humana.

Lembranças de uma guerra (por Saulo Guilherme)Onde histórias criam vida. Descubra agora