Lembranças de uma guerra (parte 3)

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 Acordei sentado em uma cadeira, no meio de uma pequena sala imunda e abafada. Sangue descia pelos lábios, e encontrava o uniforme. Ainda atordoado, notei o aparecimento de curativos no local de minhas feridas, e, enquanto eu os verificava, a única porta da sala se abriu. Diante de mim, surgiu um homem de meia idade, alto e loiro. Ele possuía um bigode espesso que cobria grande parte do lábio superior. Seus olhos azuis, fitavam-me de forma estranha, e somente após um tempo, pude decifrá-los. O fardamento, trajado pelo homem, apresentava diversas honrarias e condecorações. Ele me rodeou, parou novamente de frente a mim, e sem ao menos ter interesse em saber meu nome, perguntou-me, com uma voz cansada, tentando manter-se firme, o que eu queria com ele. 

    Ausente de cerimônias, de forma direta, comecei a revelar detalhadamente onde cada pelotão alemão se localizava. Contei sobre todo o plano de ataque, a data na qual ocorreria e a quantidade de soldados envolvidos. Ele ouvia tudo em silêncio e observava-me atentamente. Quando enfim terminei de entregar as informações, o homem de meia idade aproximou-se de mim e ficou a um palmo de distância. Aumentando gradativamente o tom da voz, disse-me -Você cometeu um erro, rapaz. Acha mesmo que acreditarei nisso? – e gritando - Não minta para mim! - Em seguida, puxou uma arma e a apontou para minha cabeça. Eu mantinha-me sólido, de cabeça erguida. Sem hesitações, voltei a falar calmamente, - A Luftwaffe está se retirando da Rússia. Eu estou lhe dando as informações mais importantes da guerra. Ninguém se arriscaria tanto por uma mentira. Pode acreditar em mim e vencer, ou atire, saia por aquela porta, e veja seu exército ser aniquilado, até não sobrar nenhum soldado capaz de levantar uma maldita arma. Quando isso acontecer, lembre-se dessa conversa.

- Você é italiano, - ele indagou. - há vários conterrâneos seus no campo de batalha, lutando e morrendo pela vitória do seu país, e você está aqui, entregando um a um. Agora diga-me, porquê eu confiaria em um traidor dos próprios irmãos de pátria? - Levei alguns segundos para organizar as palavras. A sala abafada deixara-nos completamente suados. Respirávamos com certa dificuldade, mas permanecíamos firmes, encarando um ao outro. E dessa maneira, o falei: - Há dois dias, encontrei uma pequena menina sozinha. Havia acabado de perder o avô e o lar, soldados russos incendiaram sua casa e os obrigaram a sair. O avô da pequena, não resistiu. Eu a acolhi, a alimentei e tentei matá-la. Entretanto meus companheiros nos acharam, e ao contrário de oferecerem socorro, eles me balearam duas vezes, levaram a menina e a estupraram. Você poderia ter me matado assim que entrou, porém, resolveu me escutar, e antes disso, cuidou de minhas feridas. Você é um bom homem. E eu conheço o seu olhar. Está cansado desta insanidade, incomodado, assim como estou. Deve ter presenciado, em sua jornada, maldades similares ou superiores a esta. Somente deseja o fim desse caos para poder voltar a sua casa e a sua família. Não tenho esse privilégio. Caso eu volte à Itália, serei caçado e julgado, morto por trair minha própria terra. Receberá exaltações por ter ganho a guerra, enquanto viverei sendo um fugitivo, um desertor. Sei que os russos são igualmente monstros integrantes deste imenso manicômio. Estou ciente das atrocidades cometidas por seus soldados, mas da mesma forma que você, eu só quero o fim de tudo isto. 

Ele se afastou de mim, passou a mão no rosto enxugando o suor, fechou os olhos por segundos, e ao abri-los, perguntou-me: - E quando acabar, qual será seu destino?

Tal questionamento pegou-me desprevenido. Até então, acreditava encontrar naquela cidade o término de minha jornada. No entanto, a resposta dada seguiu um rumo completamente diferente. - Peço-lhe gentilmente – eu falei – que no fim, informe a todos sobre a minha morte. Em seguida, abra a porta, me entregue uma nova identidade, e deixe-me em algum país próximo.

Ele me olhou surpreso, caminhou em direção a porta, e antes de sair, expressou sua curiosidade, - você sofreu o bastante. Está ferido. Ficará preso por um bom tempo, e depois, perderá tudo o que ainda lhe resta. Nunca mais verá aqueles a quem ama. Mesmo assim, deseja continuar vivo. Algum motivo especial?

- Porque após o inverno, vem à primavera, e a aurora surge ao término da noite. – O respondi. – Caso encontre a menina com os alemães, imploro, cuide bem dela. – Ele deixou a sala, fechou a porta, e então, o silêncio preencheu o local.

Mantiveram-me preso por um longo tempo. Era um alívio quando um soldado levava-me comida, ou trocava os curativos. Eles não pronunciavam qualquer palavra, contudo, afastavam momentaneamente minha solidão. Ninguém informava-me sobre a guerra, apenas posteriormente soube de Hiroshima e Nagazaki, sem me surpreender, eu já havia presenciado a capacidade dos homens em fazer o mal.

A sala abafada possuía algumas tímidas entradas de ar próximas ao teto. Para respirar tranquilamente, era necessário permanecer imóvel. Em meus devaneios, pensei na minha mãe, sentada na cadeira, olhando o horizonte e rezando, esperando reencontrar seu filho. Questionei-me se ela suportaria saber de sua morte. Tal pensamento atormentou-me por vários dias. Aos poucos, fui morrendo. Deixando todo meu passado para trás. Aceitando a perda de todas as lembranças, ainda não construídas, com quem eu amava. E gradativamente, fui esquecendo um a um.

Na semana em que os russos passaram dias sem me levar comida, imaginei ter sido abandonado. Morreria de fome ou asfixiado por entrar em desespero. No entanto, a porta se abriu, e dela, surgira o mesmo homem de bigode espesso.

Você fica péssimo de barba, rapaz. – Ele me disse. – fico feliz que esteja vivo, dei ordem aos soldados para te deixarem morrer. Precisava despistá-los. Se bem que provavelmente já estão bêbados em algum lugar. Me levantei com dificuldade, e o falei – Obrigado por lembrar de mim. Só por favor, tire-me daqui.

Ele me entregou alguns documentos – Além de nós, o prédio está vazio. Todos acreditam na sua morte. Esta é sua nova identidade. Será transportado à Suécia por um cargueiro clandestino, de lá, faça tudo, menos retornar à Itália.

Consenti com a cabeça. Eu já passava pela porta quando ele indagou – Não quer saber quem ganhou a guerra?

- Ninguém ganhou, - o respondi – todos perdemos algo.

E então, antes de partir e começar uma nova vida, fiz a pergunta que mais pulsava em minha mente – Conseguiu achar a garota?

- Um dos soldados a encontrou. Está com a minha família agora. Não dizia qualquer palavra, até eu lhe contar a respeito de sua morte, ela me olhou e disse que era um bom homem. Isso me convenceu a vir libertá-lo. Em seguida, correu para cozinha, e ao voltar, entregou-me isto, - Ele tirou um pedaço de pão guardado no bolso do fardamento, e deu-me – Ela pediu para colocar em seu túmulo. Um sorriso brotou em meus lábios.

Logo após, o homem de bigode espesso levou-me ao cargueiro. Fui transportado à Suécia, e anos depois, embarquei para os Estados Unidos. Vi um país pregar à liberdade e perseguir seus cidadãos negros. Vi países ameaçarem entrar em guerra outra vez. Conheci uma mulher, tive filhos, e agora, aos noventa anos, as cicatrizes de minhas feridas levaram-me a escrever esta história. Lembraram-me que conheci do mundo sua verdadeira face. E quando essa máscara chamada paz cair, e vai cair, lembremos de nossos erros, e mesmo em meio ao caos, sejamos melhores. Contudo, se isso não acontecer, torço para o inverno tragar toda essa maldade desprezível, até porquê, logo em seguida, quando menos esperarmos e quando a ruína for tudo o que se encontre, a primavera chegará. 

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Lembranças de uma guerra (por Saulo Guilherme)Onde histórias criam vida. Descubra agora