AGNES

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Meus pés pousaram perfeitamente sobre o chão após uma queda livre do vigésimo andar de um prédio, na parte central de Seattle. Já faziam alguns dias desde a minha última caçada e o pequeno incômodo no fundo da minha garganta já evoluía para uma sensação ácida e sufocante.

Não que eu precisasse do ar para sobreviver.

O que eu precisava tinha outro nome. Muito mais denso do que o ar, tem cor, espessura e gosto.

Sorrateira, eu espreito sob o disfarce oferecido pelos becos escuros, aguardando o momento exato de avançar no alvo mais vulnerável que eu puder achar para fincar as minhas presas. A madrugada na cidade proporcionava um cenário perfeito para me esconder nas sombras, até achar a minha vítima.

E ali vinha ela, na figura de um homem de meia idade, cambaleando pela calçada à procura de algo, pelo que parecia. Ao retirar uma chave do bolso, ele apontou-a para frente até que seu veículo sinalizasse, alguns poucos metros adiante.

Provavelmente estava bêbado, como a maioria das transeuntes que andavam por aquelas bandas a esse horário, o que sempre tornava as coisas muito mais fáceis para mim. O cheiro dele exalava e chegava até minhas narinas como um irrecusável convite ao ataque.

As ruas vazias da madrugada me permitiam vagar com certa liberdade, sem levantar suspeitas.

Em questão de milésimos de segundos me aproximei do homem, que ainda tentava abrir a porta do seu carro. Meus passos rápidos eram leves como penas e meus movimentos velozes como um raio, nem se aquela pobre alma tivesse a rapidez de uma águia poderia prever minha chegada.

Rapidamente envolvi seu pescoço com meus braços, o impedindo de gritar por socorro, logo o arrastando de volta para a escuridão de um beco qualquer, onde enfiei minhas presas fundo em sua jugular. Seu doce sangue invadiu minha garganta, eu podia sentir o líquido adentrando meu sistema e me livrando da sensação ardente da sede.

Nunca me sentia tão forte e satisfeita como quando acabava de me alimentar de uma presa. Era como se minha energia vital fosse preenchida por completo.

Assim que finalizei, a vida já não residia mais em seus olhos, os quais encaravam vazios o céu. Suas mãos que antes arranhavam meus braços em agonia, agora pendiam ao lado de seu corpo. Em um ligeiro movimento, cortei o seu pescoço com minha adaga, em cima das marcas da minha presa e o coloquei dentro de seu carro, aproveitando para vasculhar o veículo em busca de algo de valor.

Eu sempre tomava o cuidado de fazer com que meus ataques parecessem com um assalto ou algo do tipo, para que fossem tratados como tal pelas autoridades e demais pessoas que encontrassem os corpos. Assim eu assegurava meu segredo e ainda conseguia alguns proventos que pudessem pagar por minhas necessidades.

Eu não precisava de muito, mas gostava de ter um teto pra me esconder da luz do dia e outras coisas que facilitassem meu disfarce.

Haviam alguns problemas com os cenários que eu montava, eu sabia disso. Como, por exemplo, o fato de não haver sangue no banco onde minha vítima teria sido assassinada. Com toda a certeza os peritos suspeitariam do fato de o corpo dele já estar praticamente sem sangue e de não haverem respingos no carro ou em nenhum lugar próximo, o que deveria haver no caso de um corte como aquele.

Porém, qualquer que fosse a teoria levantada para explicar aquilo, certamente não envolveria uma fera assassina que tem a capacidade intelectual e motora para arquitetar um latrocínio. Então, para todos os efeitos, eu estava segura.

Assim que terminei de encher os bolsos do sobretudo com algum dinheiro, joias e um relógio que parecia caro, fiz meu caminho de volta para a lateral de um dos prédios, onde escalei rapidamente até a cobertura.

A cidade permanecia tranquila e silenciosa de onde eu observava. Os frios ventos sopravam, levantando meus longos fios negros no ar como uma cortina, enquanto eu passava meus olhos sobre as superfícies dos prédios. me certifiquei de que não tinha plateia antes de disparar em direção ao meu esconderijo temporário.

Eu passava como um vulto, de teto em teto, quase imperceptível sob a luz da lua. Naquela velocidade eu perdia a forma aos olhos humanos, qualquer um que me avistasse à distância provavelmente concluiria se tratar de alguma ave ou apenas uma forte corrente de vento, passando por sobre os prédios.

Quase que instantaneamente cheguei ao topo do prédio onde ficava o pequeno quarto que eu havia alugado. Com pouco esforço me esgueirei até minha janela, adentrando a sala escura e empoeirada e depositei os objetos que havia roubado do carro da minha vítima. Uma aliança e um cordão de ouro que encontrei no porta-luvas, seu relógio e uns 300 dólares que achei na carteira, daria para algum tempo.

Analisando o cordão mais atentamente, pude notar a fotografia de duas garotinhas na parte interna do pingente, provavelmente suas filhas.

Há algum tempo atrás, isso teria feito meu estômago afundar em culpa. Agora, entretanto, eu já havia me acostumado a viver com o remorso como se ele não fizesse diferença. E realmente não faz.

Abri a gaveta da estante no canto da sala e coloquei os objetos lá dentro, aproveitando para retirar minha carteira de Lucky strike e isqueiro. O vício em nicotina era algo que tinha ido embora assim que me transformei, porém, tragar a fumaça e senti-la entrando em meus pulmões era uma das únicas coisas que me lembravam vagamente como era a sensação de estar viva.

Me apoiei à sacada, sentindo o vento no meu rosto, enquanto observava as luzes distantes da cidade. Tentei lembrar do que Sarah diria se me visse segurando esse cigarro, ela ficava furiosa quando me via fumando, já era ruim o bastante ela ter desenvolvido um câncer. Ela não queria o mesmo futuro pra mim.

Dadas as atuais condições, não é como se eu pudesse estar ainda mais morta.

A lembrança rapidamente atingiu meu rosto como um tapa. Não demorava para isso acontecer todas as vezes que me recordava de minha irmã.

Com cuidado, puxei o escapulário que ela sempre levava consigo, a corrente dourada de ouro contrastava com o pingente de quartzo rosa, em um formato de gota. Sempre que eu olhava para aquele pingente, era como se eu pudesse ouvir a sua voz e ver seu rosto, mas conforme o tempo passava, essas características iam ficando mais distantes, como se eu tivesse perdendo a memória sobre ela.

O fato de eu estar morta não anulava a dor que eu sentia com a sua perda, nem que eu vivesse por 1000 anos esse vazio seria preenchido. E o que mais me causava sofrimento, era saber que isso é o que provavelmente aconteceria.

Meu destino, afinal, era vagar como uma condenada. Sem poder viver, sem o direito de morrer.

Quando nos transformamos, mesmo que não sejamos mais as mesmas pessoas, ainda resta, no fundo de nossas almas apodrecidas, uma chama, algo que nos faz continuar peregrinando sobre essa terra. Essa chama é uma vaga lembrança de quem nós fomos algum dia, um impulso que guia nossos caminhos, ainda que como os seres inegavelmente assassinos que somos.

Para alguns, esse ímpeto é representado pelo amor por algum companheiro ou familiar. Para outros é poder, conquista e glória. Ou até mesmo o simples desejo de se segurar à ‘vida’, mesmo que esta já não seja plena como a dos mortais.

Para mim, esse impulso vinha de algo muito claro e objetivo, algo que ardia como a minha sede, mas nem todo o sangue do mundo poderia suprir.

Vingança.

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