A FERA

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Seattle
7 anos atrás

Fazia uma noite agradável em Seattle quando Sarah e eu voltávamos de uma sessão de quimioterapia no hospital Saint Joseph. Aquele tinha sido um bom dia, ela não estava sentindo tantas tonturas nem dor de cabeça, na verdade estava até disposta. Isso me deixava feliz, Deus sabe o quanto os dias bons eram raros.

Liguei o rádio na tentativa de melhorar ainda mais o humor dela durante a rápida viagem de carro entre o hospital e nossa casa. Talvez ela até comesse algo quando chegássemos.

Faziam 3 meses que nos mudamos da Carolina do Norte Para cá. Sarah havia sido diagnosticada com leucemia há 6 meses, desde então estávamos tentando de tudo para curá-la, fomos em alguns médicos os quais nos indicaram alguns tratamentos. Porém o que mais nos deu esperança até então fora o programa que encontramos no St. Joseph, então mudamos.

Larguei a faculdade, amigos e relacionamentos e trouxe ela pra cá. Éramos somente eu e ela há muito tempo. Órfãs de mãe e com um relacionamento paterno inexistente, aprendemos a nos virar sozinhas e nos saímos muito bem. Apesar de ela ter apenas 16 anos - Nossa diferença de idade é de 4 anos - Sinto que ela cuida de mim mais do que eu dela.

Enquanto tentava sintonizar na sua estação favorita, podíamos ouvir sobre a estática a notícia de mais um ataque na parte central de Seattle. Já há algumas semanas aquilo vinha acontecendo, ataques brutais e aleatórios, com alguns mortos e vários desaparecidos. O mais assustador era que não se sabia quem ou quê estava causando aquilo, não havia nenhum padrão ou alguma pista que levasse a algum culpado.

As pessoas só estavam desaparecendo e algumas outras estavam sendo mortas sem nenhuma resposta plausível. Talvez a cidade estivesse sendo invadida por felinos selvagens, ursos ou algo do tipo. Mas era inacreditável como uma horda de animais poderia estar fazendo esse tipo de ataque sem deixar vestígios.
Isso me fazia temer pela nossa segurança, cheguei a pensar em voltar para nossa antiga cidade por conta disso. Mas a saúde de Sarah era a prioridade, se ficar aqui era a nossa melhor chance de conseguir sua cura, aqui nós ficaríamos.

Pisei mais fundo no acelerador, na intenção de chegar na segurança do nosso lar o mais rápido possível. Sintonizei em uma estação musical qualquer, só para evitar perturbá-la com as mesmas preocupações que me afligiam.

A estrada estava vazia naquele horário da noite, já passava das 23h.
O trajeto estava escuro, algo havia acontecido com a iluminação das ruas. Diminui a velocidade, tentando me guiar pelo facho de luz do farol.

- Agnes. - Ela desviou os olhos da revista em quadrinhos que lia e me chamou. - Você acha que houve algum tipo de apagão?

- Não, a via principal estava iluminada. Talvez tenha havido algum problema com a iluminação desse trecho em específico.

Sarah deu de ombros e continuou folheando a HQ. Às vezes era irritante o quanto ela era ligada a esses universos fictícios de super-heróis.

Nossa casa ficava mais afastada da área central de Seattle, sendo mais próxima dos subúrbios. A estrada que ligava um núcleo ao outro passava por uma área menos habitada e o movimento era escasso, principalmente tarde da noite. Apesar de já estarmos acostumadas a fazer esse trajeto, a escuridão atrapalhava consideravelmente a direção, especialmente nas curvas.

Com cuidado, virei o volante do carro, me certificando de permanecer o mais rente possível ao lado direito da estrada, uma vez que a mureta do lado oposto havia sido arrancada há algumas semanas para uma obra de manutenção.

Antes mesmo que eu pudesse finalizar a curva, algo pousou no capô do carro com um estrondo, fazendo meu coração saltar pela boca e eu rapidamente perdi a direção do veículo.

O que eu concluí em um primeiro momento se tratar de um felino, pela rapidez com que saltou em nossa frente, logo tomou uma forma humana, nos encarando com grandes e intensos olhos vermelhos, enquanto derrapávamos sobre a pista.

Tudo durou alguns poucos segundos, até o carro ser lançado para fora da estrada e percorrer mais alguns metros sobre a grama, capotando duas vezes.

Acredito ter perdido a consciência por algumas frações de minuto. Recobrei os sentidos com certa dificuldade e muita urgência, imediatamente procurando por minha irmã, a qual estava desacordada e presa pelo cinto de segurança.

Desconectei o meu próprio cinto e fui ao seu socorro, uma poça de sangue já se formava no teto do carro, que estava de ponta-cabeça. Localizei a área da ferida, a cabeça de Sarah, ela perdia sangue muito rápido e eu sabia que nosso tempo estava acabando.

Se a falta de pressão sanguínea não a matasse, aquela coisa que atravessou nosso caminho, há pouco, mataria nós duas.

O que diabos era aquilo? Era uma pergunta que martelava em minha mente, mas eu não tinha tempo para tentar respondê-la. Agarrei Sarah pelos braços e me esforcei para arrastá-la para fora do automóvel com meu corpo. Nesse instante senti uma dor intensa nas pernas, provavelmente tinha quebrado alguma coisa.

A dor não me impediu de continuar nos arrastando para fora. O plano era sair antes que o carro pegasse fogo ou explodisse, e então gritar por socorro ou ligar pra polícia. Mal sabia eu que esses planos não chegariam nem perto de serem realizados.

Eu ainda estava dentro do veículo quando senti uma mão agarrar meus ombros e me puxar pra fora com uma facilidade assustadora. Eu tentei lutar para me desvencilhar, mas o esforço foi em vão.

Uma mulher era a dona daquela força descomunal. Como se eu fosse um pedaço de papel, ela me ergueu com apenas uma das mãos, dali eu pude ver seu rosto, pálido como um giz de cera, seus cachos ruivos emolduravam sua face assombrosa. Os olhos de um vermelho profundo, me lançavam o mesmo olhar da criatura que aterrissou em meu carro havia me lançado.

Um medo intenso me atingiu, não conseguia pensar em mais nada a não ser no fato de que aquele provavelmente seria o meu fim e o de minha irmã. Apesar de uma parte de mim ainda acreditar que aquilo era um sonho ruim, ou alguma alucinação, eu continuava a me balançar e resistir, tentando inutilmente me livrar da morte que me aguardava.

Em um movimento rápido como um sopro, ela me aproximou de seu rosto, atravessando seus dentes afiados em meu pescoço. A dor intensa de ter a minha carne rasgada não foi nada comparada ao que viria a seguir.

Depositando seu gélido toque em meu rosto, ela me jogou ao chão. Naquele momento toda a minha preocupação com minha irmã ou com a minha própria vida foi embora. Eu não conseguia focar em mais nada que não fosse a sensação extremamente agonizante que ela havia depositado em meu corpo.

Meu sangue queimava, era como se meu corpo inteiro ardesse em chamas, minha visão ficou turva e meus punhos se fechavam em um espasmo terrível. Eu mal conseguia saber se estava gritando ou não dada a forma como minha cabeça latejava de dor, eu simplesmente já não conseguia ouvir meus próprios pensamentos. Nunca desejei tanto estar morta como naquele instante.

Com um esforço tremendo, me virei na direção do carro onde havia largado a minha irmã. A criatura já se curvava sobre seu corpo, parecendo fazer o mesmo que fez comigo.

Aos poucos a minha visão foi ficando distante e fui perdendo minhas forças. Meu coração que antes estava acelerado, agora já batia com intervalos espaçados de tempo, sinalizando que logo pararia de bater.

Me rendendo à força maior que insistia em sugar minha vida, voltei meu olhar ao céu. Fazia uma noite estrelada.

Nunca fui uma pessoa religiosa, ou que acreditasse em algo sobrenatural, mas naquele momento pedi que Sarah continuasse desacordada, para não sentir a mesma agonia que eu na hora de sua morte.

Com um último suspiro, fechei os olhos e deixei a escuridão me consumir por completo.

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