PROPÓSITO

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Agnes.

Ao menos isso. Ele aceitara me treinar, já era um começo.

Posso não ter sua confiança ainda, claramente, mas pelo menos teria a chance de conquistá-la.

Nem precisei estudar sua postura para saber que Jasper não confia em mim, sua proposta me deixou isso bem claro, ele me ensinaria o que pudesse e depois eu teria que ir embora. Não que isso fizesse diferença, nunca pretendi ir para lugar algum, muito menos permanecer ali, ficaria apenas o tempo necessário. Então não fazia a mínima diferença aceitar ou não.

Após me acertar com ele, subi para o quarto que me designaram durante a minha curta estadia ali. Eu procurava não passar tanto tempo assim com os Cullen, tinha receio de não conseguir dissimular meu ódio tão bem e acabar me entregando ou vacilando de alguma forma.

Entrei no quarto e fechei a porta atrás de mim, me sentindo agradecida por poder ter um tempo sozinha para botar os pensamentos em ordem.

O cômodo era razoavelmente espaçoso, nada parecido com qualquer quarto que já tive na vida, principalmente naquele cubículo que compartilhava com Sarah em Seattle. Uma abertura enorme na parede dos fundos dava direto para o bosque que a família costumava chamar de quintal, a luz do dia entrava de maneira sutil, dando um ar asseado ao espaço. Alguns discos e Cd’s pousavam sobre as estantes rentes a parede, o que fazia parecer com que aquele quarto pertencesse a um adolescente dos anos 90.

Acho que eles demoravam um pouco para se ajustar às eras em que viviam.

Me encontrei imaginando o que cada um havia visto em cada uma das épocas em que existiram como seres imortais, as coisas incríveis que haviam presenciado, os fatos históricos pelos quais haviam passado. Eram como viajantes no tempo, viveram coisas que nenhum dos seres vivos nos dias de hoje jamais tiveram a chance de vivenciar e ainda veriam mais do que qualquer um deles poderia sonhar.

Às vezes me pegava pensando nessa possibilidade para mim mesma, tentando encontrar algo positivo no meu atual estado imortal. Mas logo esses pensamentos se transformavam em algo distante e doloroso, não acho que a imortalidade me seria muito agradável.

Parada em frente a um grande espelho acoplado à parede esquerda do quarto, analisei meu rosto. Minha pele negra retinta havia ganhado um tom acinzentado pela palidez que a falta de sangue causava à aparência, os longos cabelos negros caiam sobre meus ombros, talvez essa fosse a única parte do meu corpo pela qual eu ainda tinha algum apreço.

Depois da transformação tudo em mim ficou...eu não sei...estranho, não parecia mais comigo. Nem os lábios curtos, os quais escondiam minhas presas, nem os meus grandes olhos que já foram negros e agora variavam de um vermelho vivo para um alaranjado profundo nos melhores dias. Muito menos o nariz longo que me lembrava o da minha mãe, agora só servia para farejar minhas presas e se contorcer em função do instinto, como o de um animal selvagem.

Contornei meu rosto comprido com mãos caludas, pensando no quanto eu odiava o que havia me tornado, em tudo que havia deixado pra trás contra a minha vontade, por conta de um futuro inexistente, pelo menos para mim.

Eu daria tudo para voltar ao que fui um dia, mas sabia que aquilo era impossível, pensar no ódio que me movia tinha se tornado uma válvula de escape que me impedia de cair no completo abismo que assombrava meu coração morto.

Marasmo, pensei.

Eu estava em estado de completo marasmo, uma apatia que me esgotava e somente era substituída pela ira que me consumia, então eu deixava que aquele sentimento queimasse dentro de mim, já que era melhor sentir algo do que não sentir nada.

Minha feição refletida no espelho indicava que meu estado de espírito havia mudado novamente, eu sentia uma raiva contida que era despertada facilmente, apenas algumas más lembranças eram suficientes para trazer o sentimento à tona.

Lembrei do que Alice havia dito no dia anterior, as suas visões sobre o futuro e sobre mim. Me ocorreu que talvez eu devesse tentar descobrir algo mais a respeito disso, ou acerca de suas impressões iniciais sobre mim, qualquer coisa que me tirasse do escuro. Era importante para mim saber o que realmente a motivara a me salvar e trazer-me até sua casa, a motivação de Carlisle em querer me transformar em uma deles também me intrigava, não é possível que os Cullens andassem por aí trazendo gente aleatória para seu lar e para o meio de sua família, algo devia estar por trás de toda essa suposta hospitalidade.

Coloquei novamente uma expressão neutra em meu rosto e me dirigi ao andar debaixo da casa, passando novamente pelo ridículo quadro repleto de chapéus de formatura no caminho. Se algum humano passasse por ali e perguntasse do porquê daquele tanto de chapéus, o que eles responderiam? “Simbolizam cada ano em que nos formamos no ensino médio durante nossos séculos de vidas vampíricas”, simples!

Na sala de estar encontrei Emmett, ele parecia entretido com algum jogo de futebol que estava sendo transmitido na televisão. Não pude deixar de notar que de todos naquela casa, ele era o que mais se assemelhava com um ser humano normal, seus interesses, modo de falar e até expressão eram as que mais se aproximavam de como um cara da idade que ele aparentava ter deveria ser. Eu não deveria sentir simpatia por nenhum deles, mas por algum motivo eu gostava daquilo nele.

- Emmett, você sabe onde está Alice? – Me aproximei do sofá onde ele assistia, atento, ao jogo.

Sem tirar os olhos da tela, ele levantou de maneira dramática uma das mãos, fazendo um sinal para que eu aguardasse. Olhei confusa para a televisão e então de volta para ele, nunca parei para entender as regras do futebol americano, então não faço ideia do que exatamente causara o seu estado de tensão.

Se erguendo vagarosamente, Emmett parecia prestes a entrar em combustão espontânea dada a sua feição compenetrada e músculos travados, foi então que ele explodiu em uma comemoração espevitada, esbravejando pelo seu time.

- Isso! TOUCHDOWN! – O homem girou 180° em seus pés e veio em minha direção, mal dando tempo de eu me preparar quando me pegou pelas pernas e levantou-me no ar, rodando pela sala com meu corpo sobre seus ombros, enquanto urrava o nome de seu time como se estivesse em um estádio.

- Cara, me põe no chão, anda, me larga Emmett! – Agarrei seus ombros e me impulsionei ao chão rapidamente, o forçando a me soltar.

- Foi mal Agnes, eu me empolgo com certa facilidade. – Ele se desculpou ainda com um sorriso faceiro em seu rosto, não parecia muito arrependido. Era difícil se irritar com ele, mas eu tentava.

- Certo, enfim, você viu Alice? Preciso conversar com ela.

- Se quer falar com ela vai ter que esperar um pouco.

- Por que?

O sorriso sugestivo permanecia desenhando em seus lábios.

- Os pombinhos subiram não tem muito tempo, talvez estejam só conversando, mas...eu não apostaria nisso. – Um riso malicioso escapou de sua boca, antes do homem voltar a sentar no sofá e focar inteiramente na televisão, exatamente como fazia assim que cheguei.

Ah, claro! Estão transando. Esqueci que para um casal de vampiros sempre é lua de mel. Que inferno!

Não posso negar que o sexo nessas condições é bem melhor do que quando estava viva, outro ponto para casa Drácula. Tive uns rolos com alguns caras como eu, enquanto fazia meu tour pelo submundo imortal, até os mais medíocres se saíam melhor do que a maioria dos humanos, então consigo entender essa fixação sexual que boa parte dos casais tinha.

De qualquer maneira, não me agradava muito saber que teria que esperar os dois terminarem para poder falar com Alice, tudo para mim tinha a maior das urgências naquele momento. Mas se eles estiverem se pegando eu não acho que isso seja algo que eu queira presenciar.

Mas talvez eu possa atrapalhar.

O pensamento me fez rir sozinha, imaginando o cenário onde eu me finjo de sonsa e interrompo o momento dos dois, seria no mínimo engraçado. E a cada segundo, uma opção mais e mais atrativa.

Discretamente chego até a escada da cozinha e subo de forma silenciosa, quase nas pontas dos pés, evitando máximo anunciar minha aproximação. Passo rapidamente por algumas portas no corredor acinzentado, – nunca me canso de observar a quão polida a casa é – e aguço a audição para tentar identificar atrás de qual daquelas portas eles estavam, avançando ainda mais para o final do corredor.

Duas vozes distintas ao fundo de um dos quartos chamaram minha atenção, não conseguia distinguir o que estavam falando, mas sabia que tinha alguém ali, provavelmente Jasper e Alice. Na minha habitual aproximação sorrateira, cheguei à frente da porta e bati três vezes, aguardando uma resposta por alguns segundos, mas ela não veio. Insisti, batendo contra a porta de madeira mais uma vez, eu sabia que estavam nesse quarto e não iria embora sem cumprir meu objetivo.

Mais algum tempo e finalmente escutei passos se aproximando da porta e BINGO! Era Jasper, e com uma expressão nada amistosa no rosto, tive que me controlar para não sorrir vitoriosa diante daquilo.

- Desculpe, atrapalho algo? – É claro que eu atrapalhava, eu sabia disso e tenho certeza que ele, por sua vez, sabia que fiz de propósito. Percebi que seus olhos se estreitaram e seus lábios se comprimiram, provavelmente estava se segurando para não avançar em meu pescoço, era a situação mais hilária em que eu me encontrara em um bom tempo.

- O que quer?  – Sua voz soou mais pesada do que costume.

- É a segunda vez que me pergunta isso hoje. – Eu disse com um sorriso de canto, mal conseguindo me conter com a sua frustração.

- Ela está aqui para falar comigo. – Alice revelou, passando as mãos pelos cabelos um tanto desalinhados. – Eu vi.

Ele pareceu inspirar fundo e saiu do caminho, abrindo passagem para a esposa se aproximar de mim

- Posso voltar outra hora se for mais cômodo. – Eu já tinha cortado o clima de qualquer forma.

- Não, tudo bem, podemos conversar. – Ela depositou uma das mãos nas minhas costas e com a outra, fechou a porta atrás de si.

Me levando até uma das áreas comuns da casa, ela me convidou a sentar em um sofá de couro que dava para umas das grandes janelas com vista para ao bosque.

- Eu imaginei que você teria algumas dúvidas. – Começou, acomodando-se ao meu lado– Estava aguardando que viesse até mim por conta delas.

- Você disse – Hesitei por alguns instantes – disse que me viu em uma de suas visões.

- Sim, é verdade, vi você algumas semanas atrás, eu sabia que você chegaria só não sabia como ou quando.

- Você me viu no campo? Lá onde me encontrou?

- Vi você em nossa casa, sentada a mesa com nossa família, como uma de nós.

Como uma Cullen hein! Até parece. Se a garota estivesse falando a verdade isso quer dizer que eu consegui engana-los direitinho.

- Isso significa que vou entrar para a família? – Quase não pude esconder o sarcasmo na minha fala.

- Não necessariamente, apesar de minhas visões, não a conhecemos o suficiente para que eu possa afirmar isso.

- Então por que salvou minha vida?

- É isso que mais te intriga, não é? Nunca fez nada para ajudar alguém que precisasse?

- Não algo que colocaria a minha vida e a de todos que amo em risco. – Eu podia não ter a experiência dos Cullens, mas sabia do que os Volturi eram capazes.

Alice me encarou fixamente, antes de abaixar o olhar e voltá-lo a mim logo em seguida, parecia medir as palavras que usaria e sua expressão se tornava tensa a cada minuto de nossa conversa.

- Assim que bati os olhos em você eu soube que a conhecia de algum lugar, demorou um pouco para eu me lembrar, mas eu lembrei, tem um rosto bastante memorável sabia? – Ela riu sem graça – As minhas visões variam de acordo com as decisões das pessoas, mas sobre você... em nenhuma das possibilidades você não chegava, sempre a via aqui e isso nunca mudou, nem quando estava sendo torturada por Jane. Foi por isso que eu soube que tínhamos que trazê-la.

- Teve uma visão naquele dia?

- Naquele exato instante.

- Se não me visse teria deixado ela me matar?

Ela riu novamente, olhando para fora da grande janela como se estivesse procurando algo em meio às árvores.

- É difícil dizer, mas provavelmente não, não é da nossa natureza agir com indiferença em face de violências como aquela.

Ainda assim vocês ficam sentados assistindo enquanto os Volturi fazem um massacre no seu quintal.

- Certo, fico feliz em saber. – Falei ainda incrédula, eu não acreditava na boa intenção dos Cullen e nunca acreditaria, mas a garota sabia mentir bem.

Sem aviso prévio, ela se inclinou em minha direção e agarrou levemente meu antebraço, olhando em meus olhos.

- Não sei o que é ainda, mas sei que você tem algo de muito importante a fazer, talvez possamos te ajudar com isso.

- Talvez. - Eu tenho certeza que podem, Alice.

Me oferecendo um sorriso doce, ela levantou-se e voltou em direção ao quarto.

O resto do dia passou como um lapso, me peguei todo esse tempo pensando nas palavras de Alice. E se minha vingança fosse mesmo algo predestinado, como uma justiça divina ou algo do tipo, aquela família não poderia ser tão inofensiva como pareciam ser.

E se merecessem mais aquilo do que eu achava que mereciam? Talvez essa seja a grande razão para eu estar aqui.

Eu me inclinava sobre o parapeito de ferro de uma das sacadas, sentindo o vento frio que vinha do bosque em meu rosto. Este era um lugar realmente lindo e agradável de se morar, tenho certeza de que Sarah adoraria uma casa como essa, com um quarto espaçoso e um quintal arborizado e extenso como aquele.

Eu poderia me acostumar com aquilo, se ainda a tivesse aqui comigo, se ainda estivéssemos vivas e nada daquilo tivesse acontecido, parecia com uma vida que nós duas gostaríamos de ter.

Se eu não fosse quem eu sou agora.

Eu provavelmente teria passado o resto da noite remoendo futuros impossíveis, se Jasper não tivesse me despertado chamando pelo meu nome.

- Está pronta? Vamos começar. – Anunciou decidido, passando por mim como um raio e se atirando do parapeito. Assim que ele aterrissou me lançou um olhar como se esperasse que eu fizesse o mesmo e me juntasse a ele.

Claro, o treinamento.

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