VI

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Toc, toc.

- Com licença, doutora Polansky? Lucy disse que eu tinha consulta agora - Billie abriu a porta do consultório e entrou com metade do corpo - Posso entrar?

- Fique à vontade, querida - respondeu Dra Polansky, ela tinha a voz calma e um sorriso brilhante - Na verdade não estamos em consulta, isto é apenas parte do acompanhamento, para podemos traçar o melhor projeto de tratamento possível, sente-se - apontou com gesto delicado. Ela segurava uma caneta

- Ah, sim. E como funciona? - indagou Billie, ainda discreta e acomodou-se na cadeira. A sala era maior do que ela esperava, havia um sofá cinza, mas também cadeiras de consultório. Tudo era cuidadosamente decorado em tons pastéis entre lilás e cinza, assim como em todo o pavilhão.

- Depende de você. Todo o projeto gira em torno do que você sente e pensa. Você é quem faz a sua melhora, Billie, nós somos seus apoiadores, estamos aqui para colaborar com você, não decidir. Você consegue me dizer o que está sentindo agora? Tome o tempo que precisar para responder - a psicóloga ajeitou os óculos sobre seus olhos azuis e profundos.
Polansky era extremamente cuidadosa com as palavras, o que causava uma sensação de conforto em Billie, sentimento que ela precisava mais do que tudo naquele momento.

- Na verdade eu não sei bem o que sinto - Billie respondia com a voz aquecida de quem respirava aliviado por dizer a verdade - Tudo parece tão confuso, eu mal me lembro dos dias da última crise.

- O que você lembra?

- Lembro de passar dias roendo as unhas até meus dedos começarem a inflamar. Lembro de não sentir a superfície das coisas com as mãos por conta dos dedos inchados. Lembro também de me sentir desesperada e sufocada, como se estivesse empacotada em sacos plásticos. Mas não lembro de fatos específicos - à medida em que as palavras saíam de sua boca, sua expressão facial parecia ferver; os olhos começaram a ficar vermelhos e úmidos, mas nenhuma lágrima escorria - Eu comecei a aumentar a dose dos remédios por conta própria pensando que poderia recuperar o sentido das mãos. Não conseguia tocar piano. Foi desesperador. Tenho medo de tentar de novo e não conseguir - a lembrança fazia o coração palpitar cada vez mais rápido. A respiração começava a ficar ofegante.

- Tudo bem, temos um começo. Quer um pouco de água? - questionou com ternura no olhar.

- Aceito - disse Billie enquanto esticava o braço trêmulo em direção ao copo que a Dra Polansky servia com água.

- Não conseguir tocar piano é algo que te preocupa muito? - a doutora era perspicaz.

- É mais que preocupação, é frustração. O piano para mim é um símbolo, foi onde tudo começou, onde eu tive o primeiro contato com a música, e onde eu passei momentos especiais com a minha família. Perder minha conexão com a música seria um fracasso pessoal pra mim; e eu já sinto que sou uma fracassada na maior parte do tempo - o tom de voz da menina ficou falho e baixo na última frase. Admitir que se sentia  derrotada doía tanto quanto a própria sensação de derrota. Billie sempre foi uma lutadora, mas agora ela sentia vontade de desistir de tudo, os problemas não pareciam mais só problemas, eram fantasmas atormentando os pensamentos dela.

- Billie, o estudo da música é progressivo, o que aconteceu foi um episódio de ansiedade, mas você é muito jovem e tem todas as chances possíveis de manter o tratamento paralelo com outras atividades sem problema nenhum. Crises acontecem, mas não são o seu fim. E seus dedos já estão quase recuperados - ela apontou para as mãos de Billie, os dedos ainda estavam vermelhos e sensíveis, mas nada comparado ao estado anterior.

- Às vezes eu penso que seria melhor que fosse o fim mesmo, pelo menos eu não estaria paralisada enquanto o tempo passa, ou só reagindo quando tenho crises - a menina abaixou a cabeça e colocou os cabelos atrás da orelha.

- Será que seria melhor mesmo? Sabe, querida, a vida oscila muito entre situações boas e ruins, algumas muito piores, outras muito melhores. Você está passando por momentos muito ruins, mas a probabilidade de passar por outros muito melhores é bem maior. Você tem dezoito anos. A expectativa de vida média aqui nos Estados Unidos é setenta e oito anos. Você ainda tem tanto tempo pra descobrir coisas extraordinárias, mais motivos ainda pra continuar viva - Polansky olhava Billie atenciosamente, quase com carinho. Ela era carismática, parecia se importar mesmo com a menina, Billie sentia isso - Você acredita em algum tipo de deus ou tem alguma filosofia de vida?

- Não tenho certeza se acredito - replicou tímida.

- Então, vamos pensar nas possibilidades: caso você acreditasse que a vida é uma só, como a maior parte dos monoteístas, você teria apenas essa oportunidade de trazer significado à sua existência, que já seria milagrosa por si só; mas se você acreditasse em reencarnações, como a maior parte dos politeístas, teria várias oportunidades de viver experiências únicas, porque, mesmo que você possa voltar, nenhuma vida poderia ser igual à outra - a doutora gesticulava enquanto traçava seu raciocínio, que parecia genial para Billie. Ela estava admirando estaticamente a psicóloga - Billie, querida, não importa qual dimensão, condições  ou forma de vida, toda a sua existência é única e especial, porque só você pode sentir do seu jeito. Foi por isso que eu entrei nessa profissão, cada ser humano é perfeitamente ajustado para sua realidade, e isso é tão belo que parece divino, você não acha? - Polansky retirou os óculos com a mão direita e os segurou suspensos.

- Talvez seja mesmo - Billie estava genuinamente sorrindo, seus olhos brilhavam enquanto sua mente viajava nas inúmeras interpretações seguindo essa mesma filosofia - Eu nunca havia pensado nisso antes.

- Talvez valha à pena considerar outras formas de pensar.

A consulta terminou e Polansky começou a escrever o planejamento de terapia para a menina. Ela estava otimista e Billie, renovada.

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