Chaga

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Pedi na mana Beatriz para me escrevé la. Essa esperteza de brincar co as letras, o meu sangue desse lado no me deu... mbá parece tá estragado.

- Quando eu nasci, lágrimas rolaram... não, não eram de felicidade.
Vendo bem, até quando fui concebida, lágrimas rolaram e estas também não eram de felicidade.
Na minha vida, muitas lágrimas rolaram, mas , estas ainda não eram de felicidade.
E quando sucumbir? Lágrimas também rolarão e essas, sim, talvez essas sejam de felicidade!

Toda a minha vivência, confina-se à um único espaço geográfico: o município da Chibia, concretamente na comuna de Capunda- Cavilongo.
Quanto à narrativa da minha existência, ela começa com uma breve história de amor.
Tão breve que durou o tempo necessário para se atingir um orgasmo.
Ah, esqueci de mencionar que o amor, era o amor próprio do senhor Moisés, proprietário da minha mãe e da minha família.
Ele era um ególatra, tudo fazia para se satisfazer, nada importava, nem mesmo a pureza de uma jovem de 13 ou 14anos. Não sei bem, as minhas gentes não têm uma noção certa do tempo, mas sabíamos que devia ser mais ou menos isso porque ela ainda não tinha feito o efiko.
E então, fruto desse amor narcisista, eu nasci. Estávamos ali, eu e ela, embaixo de uma mulembeira à beira da tchimpaca. Também foi ali o meu primeiro banho.

O resto, bem, vocês já sabem, é o comum...
A minha mãe era uma mucama que cedo foi levada para trabalhar em casa de uns senhores brancos.
Eu, nasci como uma degredada. Porque pior do que se ser branco ou negro numa batalha racial (ainda que silenciosa), é ser-se mulato.
Não pertencemos à lugar nenhum, temos mistura de sangues inimigos. E é exatamente essa mistura que faz com que sejamos vistos como filhos do demônio, frutos do desafio e do desrespeito.
Perto dos meus irmãos de sangue era a cabritinha, aos olhos dos meus irmãos do solo, era a catchindele.

Era filha do patrão com a mumuilinha. Todos sabiam, mas viviam como se desconhecessem.

Isto são coisas que eu já entendia bem, olhavam-me torto.
Diziam que a nossa família estava amaldiçoada e que a minha mãe, fez pacto com o demônio por dormir com o branco.
A minha mãe disse que antes, isso tudo era diferente. Que não havia este silêncio todo, o silêncio que corrói.
Porque aqui os mais velhos quando estão decepcionados, nada falam sobre o assunto. Só ouvimos murmúrios, os miux dos constantes mixoxos e recebemos muito desprezo. E o olhar... aquele olhar vazio que nos passam de relance, como se tivessem deixado de nos ver, então, começamos a aprender a viver assim, de tolerância.
Já não haviam fogueiras durante a noite, idas ao rio, nem o pirão tinha mais o mesmo sabor...
Estavam todos muito tristes e isso deixava-lhes feios... a tristeza crescia cada vez mais e isso deixava-lhes ainda mais velhos .
É isso que eu representava, a chaga.
Quando comecei a perceber isso, calei-me também.
Fazia o trabalho e assim que acabasse, ia para a tchimpaca, sentava-me a pensar e a comer.
Ali, era tudo mais leve, mas haviam dias em que as minhas lágrimas eram tão salgadas que as macopacopas e os mirangoles, já não me sabiam bem, até que deixei de os comer.
Agora, ficava só sentada à espera que escurecesse até ao ponto em que a penumbra não me permitisse ver os olhares desgostosos.
Haviam outros kimbos ali perto e as famílias não eram assim... talvez a culpa fosse minha .
E se eu fosse embora? Talvez voltasse tudo ao normal .
E então foi isso que eu fiz, fui embora de tudo, até de mim mesma.
Mas antes, procurei a mana Beatriz para me escrever isso, ela concordou quando soube que eu ia desaparecer, sabíamos que era o melhor a se fazer ...
Que outro destino teria? Se é isto que eu sei, a amargura é tudo que conheço.
Não procurem culpados, foi uma questão de justiça... justiça por mãos próprias.

Um pequeno fôlego de mim, para mim.



Glossário:

Cabritinha- adjetivo pejorativo utilizado para designar pessoas de raça mista, vulgo, mulatas.

Capunda- Cavilongo- uma vila e comuna angolana que se localiza na província da Huíla, pertencente ao município de Chibia.

Chibia- município da província da Huíla, Angola.

Efiko ou ekwendje- é um ritual tradicional realizado para dar a conhecer que a jovem já se tornou mulher. Ocorre quando as meninas atingem idades entre os 16 e 18 anos (altura em que os seios estão crescidos). É de extrema importância, pois, a jovem que se casa ou engravida sem passar pelo efiko, é vista como uma pessoa sem valor.

Kimbo- substantivo masculino derivado de línguas nacionais angolanas, utilizado para designar um conjunto de casas que formam uma aglomeração rural, é sinônimo de aldeia.

Mana- substantivo feminino adotado pelos mumuílas para se referir à uma entidade patronal ou ainda à uma pessoa adulta ou digna de respeito.

Macopacopa- fruto silvestre próprio da região.

Mbá- palavra usada para demonstrar sentimento de alienação em relação à uma situação .

Mirangolo- fruto silvestre próprio da região.

Miux- onomatopeia de mixoxo.

Mixoxo- ruído emitido por uma pessoa para demonstrar insatisfação sobre algo.

Mucama- criada que ajuda nas tarefas domésticas.

Mulembeira- árvore conhecida como figueira africana, muito apreciada pela sombra que produz.

Mumuíla ou muíla- um dos grupos étnicos pertencentes aos Nyaneka-Humbi ou Nhaneca-Humbe, que habita a província da Huíla, no sul de Angola.

Pirão- vulgo funge, trata-se de um acompanhamento culinário típico de Angola, confeccionado com farinha.

Tchimpaca- pequena lagoa para reserva de água.

Tchindele- adjetivo oriundo do nyaneka para designar uma pessoa branca ou de tom de pele clara. Geralmente é usado de forma pejorativa para designar pessoas mulatas, pois, não existe uma expressão própria para essa raça neste idioma.

Autoria de: Capeloa.
Lubango, aos 6 de Maio de 2020.

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