1. Aquilo que Reluz (p.2)

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Chloé encarou Diana, ainda jogada no chão com a cabeça baixa. Os cabelos escuros da feiticeira escondiam sua face enquanto ela permanecia com o corpo inclinado para frente e as mãos arranhadas e sujas de sangue apoiadas sobre o colo. O vestido vermelho se espalhava ao seu redor, mas dessa vez sem todo o glamour ao qual sempre remetia aquela mulher.

Chloé sentou-se próximo a ela e tocou seus dedos gentilmente, usando seu poder para curar a pele ferida. Ela simplesmente não era capaz de ficar apenas olhando uma pessoa machucada sem fazer nada.

— Tem alguma ideia de como sair daqui sem usar magia? — questionou Chloé.

— Tenho, apenas não queria ter que recorrer a isso — respondeu Diana, erguendo a cabeça. As íris de seus olhos, antes castanhas, agora tinham um tom de vermelho profundo, que escurecia próximo às bordas e era mais claro ao redor das pupilas. Ela não tinha magia para manter o feitiço que modificava sua cor.

— Como?

— Preciso de algumas coisas.

Chloé olhou ao redor, o lugar onde estavam parecia uma espécie de sala de pedra, iluminada somente pelo fogo de uma lareira, e próximo a ela haviam algumas lenhas que decerto estavam ali para abastece-la. Além disso, nada ocupava o lugar, mas havia uma porta que levava para outro cômodo. Talvez tivesse alguma das coisas que Diana precisava.

— Quais coisas? — ela perguntou.

— Folhas secas, folhas verdes — a feiticeira usou ambas as mãos para amarrar o cabelo no topo da cabeça —,  um pouco de terra e um pouco de sangue devem ser suficientes.

— E o que vamos fazer com tudo isso?

— Pedir ajuda.

Chloé assentiu e levantou-se, ajudando a feiticeira a ficar de pé também.

Diana aproximou-se das lenhas e escolheu dois pedaços mais finos e fáceis de carregar. Estendeu um deles para Chloé, ao mesmo tempo em que colocava o próprio dentro do fogo, acendendo sua ponta.

A garota imitou seu ato e em seguida, com alguns passos em direção a porta, puderam ver que ela era o caminho para duas escadas, uma subindo para a direita, e a outra para a esquerda.

— Se separar parece uma péssima ideia — Chloé comentou, sentindo um certo calafrio.

Diana riu, as chamas bruxuleantes lançavam sombras sobre seu rosto.

— Não seja boba. Não estamos em um filme de terror. Jack não nos mandou pra cá para morrer, ele só me queria presa. Se ele quisesse me matar, teria opções melhores.

Chloé assentiu e subiu a escada que conduzia à direita, enquanto a feiticeira tomava a direção contrária.

Não havia corrimão para se apoiar, então ela tocava a parece com a mão livre ao longo da subida. Os degraus eram estreitos, de modo que seus pés não coubessem inteiros sobre eles. Subiu até o topo, onde uma porta entreaberta era a passagem para mais um cômodo.

Receosa, Chloé espiou pela fresta antes de entrar. Diana até podia ter razão, mas não ia brincar com a sorte.

Era a cozinha. Podia ver uma mesa e o fogão de lenha no canto. Apoiou a palma da mão sobre a madeira velha e áspera da porta, empurrando-a com força, fazendo com que ela arranhasse o chão e fizesse barulho ao abrir-se.

Espiou dentro mais uma vez, por segurança, apontando a tocha improvisada para ajudar a enxergar, até enfim dar alguns passos para o interior da cozinha, dessa vez conseguindo ver um canto que parecia ter alguns enlatados e alimentos não perecíveis empilhados. Se aproximou e tocou a parte superior dele, constatando que diferente do restante do lugar, não estavam empoeirados. Teve certeza de que foram deixados ali justamente para elas.

Não havia qualquer janela ou meio de enxergar onde estavam, era tão fechado que chegava a dar a sensação de claustrofobia. Tinha cheiro de mofo e umidade.

Circulou pela cozinha procurando alguma das coisas mencionadas por Diana: folhas secas, folhas verdes e terra, mas não parecia ter nada daquilo ali. Sequer havia uma brecha para que qualquer folha, vinda do lado de fora, entrasse ali dentro.

Deu meia volta para voltar à sala, torcendo para que Diana tivesse mais sorte do que ela.

***

Diana esperou até que Chloé desaparecesse completamente no topo da escada para retornar para a sala. Não havia a necessidade de todos aqueles ingredientes para o que ela estava para fazer, apenas precisava distrair a garota enquanto ela fazia o que era necessário.

Diana ajoelhou-se diante do fogo da lareira, jogando dentro dele sua tocha improvisada, pronta para iniciar sua invocação.

Tratava-se de um ritual muito simples, que não requeria qualquer magia. Não queria que Chloé o aprendesse e, por qualquer motivo que fosse, tentasse reproduzir-lo. Não era seguro.

Usou a unha de seu polegar, que mantinha sempre perfeitamente pontuda e afiada, para perfurar a pele do pulso esquerdo, apenas o suficiente para que o sangue escorresse. Estendeu-o sobre o fogo, sentindo as labaredas machucarem sua pele. Cerrou o punho para forçar o sangue a sair, contando: uma, duas, três gotas.

Recolheu o braço de volta para próximo do corpo, o protegendo em sua barriga. A pele ardia, mas ela ignorou a dor e prosseguiu com o que precisava ser feito. Diana entoou uma antiga canção na língua das fadas, a única que ela conseguia se lembrar:

“Venham a mim, povo da floresta
Tragam a dança, tragam o canto
Eu levo a vida e a felicidade.

Venham a mim, povo antigo
Tragam a comida, tragam a bebida
Eu levo a força e a coragem.

Venham a mim, povo da montanha
Tragam o prazer, tragam o deleite
Eu levo meu corpo e minha alma.

De bom grado deixo-me levar
Que Aine reine sobre minha vida,
Venham a mim, povo das fadas.”

— Você tem uma voz tão doce! — exclamou alguém às suas costas.

Diana se virou para olhar a criatura que rodopiava pela sala, murmurando a melodia da música que a feiticeira acabava de cantar. Era uma fada de pele marrom-avermelhado e longos cabelos pretos, que estavam presos em tranças.  Seu corpo era coberto por um vestido mal feito de algodão crú, com dois buracos nas costas para que escapassem suas asas, negras e brilhantes.

— O que me diz de me levar a uma festa, para que eu possa cantar mais lá?

— É claro! — A fada estendeu-lhe a mão. — Podemos ir agora mesmo.

Diana hesitou propositalmente antes de permitir que fosse tomada pela mão.

— Eu poderia levar uma amiga comigo?

— Onde está ela? — perguntou a fada, olhando ao redor.

A feiticeira ofereceu seu sorriso mais simpático.

— Eu vou chamar. Tenho certeza de que você vai adorar conhecer ela.

Anjo de TerraOnde histórias criam vida. Descubra agora