Fui até a casa da médica no dia seguinte, queria lhe contar sobre o que houve com o Padre, porém, ela não atendia a porta. Imaginei que talvez estivesse trabalhando fora dali, e decidi aguardá-la retornar. Esperei durante todo o dia, mas ela não apareceu, até que durante à noite fui vencido pelo cansaço e me forcei a retornar para casa.
Os dias se tornavam estranhamente mais escuros e frios e as missas continuavam normalmente, e notei que a cientista não aparecera mais nas cerimônias. Porém, durante uma das celebrações, a resposta que eu temia fora dito pelo Padre: a Igreja havia capturado uma mulher acusada de bruxaria e heresia. Ao falar sobre isso, o Padre me encarou fixamente nos olhos, e eu não pude deixar de sentir o grande peso da culpa me esmagar. Uma mulher seria torturada e morta, e tudo por minha causa, porque eu precisava salvar a minha mãe.
Sua execução estava prevista para o dia seguinte, eu não sabia se queria ver aquilo de perto, queria ficar em casa e chorar escondido de todos. No entanto, o Padre dizia que todos eram obrigados a comparecer na execução, caso contrário aquela alma não seria inteiramente purificada.
No dia 30 de março toda a população da pequena cidade se reunira na praça que ficava em frente à catedral, uma grande pira havia sido erguida em uma plataforma, de onde todos poderiam assistir à execução. Eu não conseguia chegar mais perto, as pessoas aglomeradas não me davam espaço para continuar a seguir com minha mãe, que também não podia fazer muito esforço.
Ouvimos o ranger das portas da catedral se abrindo, e os gritos de uma mulher que era arrastada pelos inquisidores até a pira. Tentei me espremer entre as pessoas para chegar mais à frente, enquanto o Padre fazia o seu discurso e explicava ao povo sobre os crimes cometidos pela bruxa, não prestei atenção em nada que dissera, precisava fazer alguma coisa!
Se deu início à execução, pude ver o brilho das chamas iluminar os céus; o silêncio naquele momento fora absoluto, e a partir daí não consegui avançar mais, éramos proibidos de nos movermos ou desviarmos o olhar, "Deus estava observando". Minha altura não me favorecia em conseguir enxergar o que acontecia. O silêncio da multidão fora quebrado pelos gritos agoniantes da mulher que sentia o seu corpo queimar. Meu coração acelerou, parecia que ia explodir em meu peito, o desespero tomou conta de cada parte de meu corpo, e empurrando todas as pessoas, lhes dando cotoveladas e alguns socos, consegui trilhar o caminho até a primeira fileira.
Eu sentia o calor das chamas da fogueira, mesmo estando afastado com o restante da multidão. A mulher já não gritava mais, não sabia dizer se ela estava inconsciente, ou se já estava morta naquele momento. Eu só agradecia à Deus que os gritos pelo menos cessaram, ou melhor, não sabia se deveria agradecer, para ser bem sincero... pois os homens que a torturaram e a queimaram viva se diziam serem os "Homens de Deus".
Algumas pessoas faziam suas próprias preces, talvez pela alma da pobre coitada que era queimada em praça pública, ou por medo de um dia estarem no lugar dela.
Particularmente, eu não sabia muito sobre aquela mulher, nem ao menos o seu nome. Era uma mulher muito bonita, de pele branca e longos cabelos que formavam ondas douradas, seus olhos eram como a grama na manhã de primavera. A mesma aparência da anja de meu sonho que eu havia contado ao Padre.
Corri meus olhos pela multidão, e do outro lado da praça, onde geralmente ficavam as pessoas mais ricas, pude encontrar em seu vestido bege a médica que salvara a vida de minha mãe. Sua pele escura como ébano e seu cabelo crespo eram facilmente distinguíveis dos demais, incomum naquela região. Meu coração se sentiu aliviado em saber que ela estava viva, mas um aperto veio logo em seguida ao notar seus olhos profundos me encarando friamente. Eu havia matado a sua amiga, ela sabia de alguma forma. Eu não podia ter dito a aparência da cientista ao Padre, ou seria ela quem estaria naquela fogueira, porém, não esperava que dentre tantas mulheres louras e de olhos verdes naquela cidade, seria justamente a noviça da Igreja com quem a médica conversava que seria executada.
A culpa era minha, eu podia ver em seu olhar. Porém, seus olhos se distanciaram de mim, e encararam ao padre que continuava a rezar em latim. E finalmente eu entendi o olhar da cientista. A culpa não era minha, o culpado estava à alguns metros de distância da grande fogueira, não fora eu ou a cientista com seu conhecimento que condenara aquela mulher à morte, mas sim o lobo que se vestia em pele de cordeiro, lobo que se revelou para mim naquela noite na igreja.
Meu olhar encontrou novamente o da médica, que acenou com a cabeça para mim, e eu acenei de volta, ela se virou e foi embora, abandonando a execução. Da mesma forma eu fiz, mas sem antes dar um último vislumbre para os restos da mulher carbonizada na fogueira. Assim como ela, a minha fé havia morrido naquela noite.
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Benevolência entre as chamas da Fé
Historical FictionPeste, Inquisição e guerra. O que tudo isso tem em comum? A morte. Uma mulher cai doente, sendo a primeira vítima da Peste Negra em uma pequena cidade francesa, e seu filho busca a ajuda de uma cientista procurada pela Santa Igreja para salvar a vid...